Você fecha o notebook no fim do expediente, se joga no sofá e… abre o celular. A notificação do grupo de trabalho chega com um “rapidinho aqui”, e lá se vai o descanso planejado. Se não é o trabalho, é a ansiedade por não estar sendo produtivo — até em organizar seu tempo livre. Ou então a culpa. Ou mesmo aquela sensação difusa de que você deveria estar fazendo algo.
Descansar, hoje, parece uma arte esquecida. E não é só impressão sua.
Especialistas e estudos recentes apontam que estamos tão imersos na lógica da produtividade que o descanso passou a parecer um luxo, ou uma oportunidade perdida que vai te deixar para trás. E o que deveria ser um direito humano virou mais uma tarefa frequentemente ignorada na lista de afazeres.
Por que descansar virou desafio?
A ansiedade de relaxamento é um termo usado para descrever o desconforto ou a ansiedade que algumas pessoas sentem quando tentam relaxar, descansar ou desacelerar. Em vez de se sentirem bem com a pausa, elas experimentam inquietação, culpa, pensamentos acelerados ou até sintomas físicos, como tensão muscular ou respiração ofegante.
Michelle Newman, professora de psicologia na Universidade Estadual da Pensilvânia tem estudado esse fenômeno. Em entrevista à revista Time, ela afirma: “Existe essa visão de que ‘eu deveria estar sempre ocupado fazendo alguma coisa. Muitas vezes, as pessoas acham que não é aceitável apenas ler um bom livro ou assistir a um bom programa na TV”.
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No mesmo artigo, Erin Westgate, professora de psicologia na Universidade da Flórida conta que participou de um estudo que buscava entender os efeitos de simplesmente deixar as pessoas sentadas com seus próprios pensamentos por alguns minutos. A expectativa era que isso seria relaxante e aumentaria o bem-estar.
Mas o resultado foi o oposto: muitos participantes se sentiram tão desconfortáveis em não fazer nada que preferiram levar pequenos choques elétricos a ficarem sozinhos com seus pensamentos.
No The Guardian, a terapeuta e escritora Farzana Doctor reflete sobre a própria dificuldade para descansar. Trabalhando em um hospital movimentado, raramente tirava suas pausas programadas e costumava almoçar em frente ao computador. Resultado: ele simplesmente não conseguia mais relaxar.
Doctor conseguiu identificar alguns pontos que a impediam de relaxar. Entre eles, a pressão para trabalhar mais por menos reconhecimento e internalização do ideal capitalista de produtividade constante. Além disso, ela não conseguia mais impor limites e ignorava as próprias necessidades.
O uso excessivo do celular também contribui para a sensação de exaustão contínua: meta-análises encontraram associações significativas entre uso problemático de redes sociais, ansiedade, depressão e distúrbios do sono, além de redução no bem-estar geral. Em vez de promover descanso genuíno, especialistas apontam que o uso compulsivo do celular oferece uma forma de anestesia mental: alivia momentaneamente o tédio, mas não restaura.
Esse hábito impede que o cérebro entre em estados de repouso profundo, aqueles associados à regeneração mental. Atividades como caminhar, ouvir música, meditar ou simplesmente ficar à toa envolvem outro tipo de atenção, mais suave e difusa, que ajuda a processar emoções, consolidar memórias e recuperar o foco. Já o rolar infinito de feeds, alimentado por algoritmos de recompensa imediata, prende o usuário em ciclos de estímulo que não dão espaço ao vazio necessário para o verdadeiro descanso.
Há, portanto, uma diferença fundamental entre distração e repouso. Em vez de recarregar, muitos dos nossos supostos momentos de lazer só reforçam o cansaço. O que parece pausa, muitas vezes, é só mais uma forma de ocupação disfarçada.
O significado histórico do descanso
Ao longo da história, o descanso nem sempre foi visto como o oposto do trabalho. No livro História do Descanso, o historiador francês Alain Corbin conta que, entre os gregos, o ócio (scholé) era sinônimo de cultivo intelectual e filosófico, uma forma elevada de estar no mundo, livre das pressões materiais.
Na tradição judaica, o shabat semanal simbolizava descanso sagrado. Não uma pausa por exaustão, mas um espaço para reconexão com o divino, com o corpo e com a comunidade. Já entre os cristãos, o descanso eterno era associado à salvação e à paz final. Corbin mostra que essas formas de repouso tinham um valor simbólico, ligadas ao sentido da existência.
Com a Revolução Industrial, no entanto, essa concepção muda radicalmente. O tempo passou a ser cronometrado, mensurado, subordinado à lógica da produção. O corpo foi reduzido à condição de máquina, e o descanso se tornou uma “parada técnica”, necessário apenas para manter a engrenagem funcionando.
Ainda no século 19, surgem novas formas de descanso associadas à saúde e ao lazer: convalescência em sanatórios, banhos termais, férias pagas para trabalhadores. O repouso começa a ser medicalizado, vigiado, muitas vezes restrito às elites que podiam “descansar com propósito”.
Nos dias de hoje, Corbin argumenta que o descanso moderno muitas vezes se confunde com evasão, com atividades orientadas ao consumo, ao desempenho ou à aparência de bem-estar — ao invés da cessação introspectiva. No mundo hiper conectado, essa lógica se intensifica: estar indisponível é quase inadmissível, e descansar exige justificativa. O tempo livre virou tempo “improdutivo”, a menos que sirva para recarregar a produtividade.
O descanso como resistência
Mas e se descansar fosse, na verdade, uma forma de resistência?
Tricia Hersey, fundadora do movimento The Nap Ministry e autora do livro Rest Is Resistance: A Manifesto, propõe que o descanso seja encarado não como um luxo, mas como uma prática revolucionária. Para ela, vivemos em uma cultura de exaustão sistematizada, uma herança direta de séculos de escravidão, colonialismo e exploração econômica que aprisiona corpos (especialmente as pessoas racializadas e as mulheres) à lógica da produtividade.
No podcast Become A Good Ancestor, ela defende o descanso como um direito divino e humano: não devemos descansar para produzir melhor, mas porque simplesmente merecemos isso. “Estamos descansando porque é nosso direito fazê-lo”, diz.
Para Hersey, negar o descanso é negar a própria humanidade: “Sem descanso, não conseguimos acessar a imaginação, a criatividade, os aspectos mais profundos de nós mesmos: a curiosidade intelectual, o potencial. Quando uma pessoa é privada de descanso, ela é privada de uma grande parte de sua humanidade.”
Essa perspectiva se afasta da ideia utilitarista que mede o repouso por sua capacidade de “recarregar” para mais um dia de trabalho. Em vez disso, propõe o descanso como um espaço de retorno à dignidade, de cuidado coletivo e de liberdade.
Ao considerar o descanso uma “prática de amor meticulosa”, ela convida a desacelerar não só o corpo, mas a própria lógica que rege nossas vidas. Um chamado para imaginar outros modos de existência. Mais humanos, mais lentos e, quem sabe, mais livres.
Como reaprender a parar?
Reaprender a descansar não é um botão que se aperta. É um processo, uma prática.
Comece pequeno. Em vez de esperar por férias ideais ou longas folgas, crie micro-pausas: momentos de 2 ou 5 minutos ao longo do dia em que você respira fundo, desacelera e observa o corpo. São pequenos convites para que o sistema nervoso entenda que está seguro.
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Tricia Hersey recomenda atos conscientes de pausa. Isso pode ser tão simples quanto sentar sem celular por alguns minutos, andar lentamente em silêncio, tomar uma xícara de chá sem pressa. O ponto não é a atividade em si, mas a intenção de criar um espaço não produtivo.
Os rituais de transição também são importantes. São pequenas ações simbólicas que separam o tempo do trabalho e o tempo pessoal. Pode ser uma caminhada após o expediente, uma troca de roupa, um banho quente, uma música específica. Esses sinais dão um recado ao cérebro: sinalizam que a engrenagem mudou de ritmo.
Além disso, vale explorar práticas corporais que ajudam a regular o sistema nervoso: respiração diafragmática, hum (vocalizar sons com vibração), alongamentos leves, banhos frios ou quentes, e momentos na natureza.
Mas existe também o descanso emocional e mental, aquele que exige dizer “não”, impor limites, e se permitir não dar conta de tudo. Hersey afirma que muitas pessoas resistem a descansar por mecanismos enraizados na cultura e na própria criação familiar: elas foram ensinadas que só têm valor se estão exaustas, disponíveis ou performando sucesso.
Outro elemento essencial é o descanso coletivo. A ideia de que “só você pode se permitir parar” é parcialmente verdadeira, mas também é limitadora. O apoio mútuo é poderoso. Conversas francas com amigos, pactos de pausa, ambientes onde o descanso é celebrado, não punido. Tudo isso ajuda a reconstruir nossa relação com o tempo.
Por isso, o primeiro passo para voltar a descansar talvez seja: falar sobre seu descanso, mais que sobre seu cansaço.