O Núcleo Digital é uma startup da área de gestão pública que cria ferramentas para democracia digital, sistemas online que permitem à sociedade interagir em processos de governos, organizações ou empresas. Utilizam software livre para abrir o que conseguem das caixas pretas de governos, por exemplo, desenvolvendo canais que possibilitam a participação direta do cidadão em processos tradicionalmente inacessíveis. Um case emblemático é a plataforma Gestão Urbana, uma espécie de “guichê de dicas e reclamações virtual”, que desenvolveram para a prefeitura de São Paulo. A plataforma foi criada em 2013, dentro da própria prefeitura e este processo ajudou a consolidar o Núcleo Digital como empresa autônoma.
Eles assim se assumiram em 2014 e, desde então, crescem rápido. Já prestaram serviços para a Rede Sustentabilidade (a construção colaborativa do programa de governo do PSB-Rede), o Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), o Ministério da Cultura (MinC), os governos do Rio Grande de Sul e do Ceará, além de diversos outros serviços para a prefeitura paulistana.
A semente do Núcleo Digital, porém, foi plantada muito antes, lá em 2000, em uma área aparentemente improvável: os campeonatos de games digitais. Naquele momento, Vinicius Russo, o Vini, ainda era adolescente mas, além de se divertir com seu computador já sacava o valor de comunidades online (que experimentou em jogos como Quake e Unreal) dedicadas a desenvolver um tema por prazer. Reunir interessados em investir tempo para construir algo coletivamente é uma prática comum na cultura da colaboração que, anos depois, o Núcleo Digital iria adaptar para o debate de políticas públicas.
Além disso, aprendeu também a alterar os jogos programando novas possibilidades para o sistema original — prática que está na base da ética hacker. Hoje, aos 30 anos e formação em desenvolvimento de software, Vini é CEO do Núcleo Digital.
Motivação Enquanto estudava, ele trabalhou em empresas de tecnologia da informação (TI), em pequenas produtoras de internet e agências de publicidade. Onde mais se frustrou do que encontrou prazer. Em função disso, em 2008, começou a convocar amigos para reuniões em busca de uma produção autoral. Os encontros eram chamados de Jogo12 e tinham como objetivo usar o tempo ocioso do pessoal para desenvolver projetos com propósito e impacto social. Nessa fase, Vini se aproximou de Erica Atuso e Lucas Pirola, designer e programador que depois viriam a participar da fundação do Núcleo Digital.
O Jogo12 era uma espécie produtora independente, na qual os três trabalhavam remotamente em busca de projetos. Fizeram junto o tropicalia.com.br, um projeto cultural que abriu portas para os jovens, todos por volta dos 25 anos de idade à época. Ao longo dos próximos anos, eles se envolveram com diversos movimentos políticos e digitais, como o Partido Pirata, as Casas de Cultura Digital e a campanha #EuVotoDistrital, e desenvolveram várias plataformas participativas para esses grupos, o que lhes rendeu uma experiência que seria útil mais adiante.
A gestão pública de Gilberto Kassab (2009-2012) na prefeitura paulista, porém, oferecia pouquíssimo espaço para ideias colaborativas na cidade. O arranjo com os amigos arrefeceu e, em 2012, Vini decidiu se mudar para Porto Alegre, onde moraria por um ano. Lá, envolveu-se no Porto Alegre Como Vamos, um movimento social que qualificou as eleições da capital gaúcha. No mesmo ano, também participou da criação da Casa de Cultura Digital Porto Alegre, uma rede que ocupava um dos andares da Casa de Cultura Mario Quitana, principal equipamento cultural do Estado.
Vini foi, então, convidado a criar o gabinete digital do vereador Marcelo Sgarbossa (PT), que estava assumindo. Ficou três meses lá e desenvolveu a plataforma de participação online que até hoje baliza o trabalho de Sgarbossa. Depois disso, voltou a São Paulo, acreditando que a gestão de Fernando Haddad estaria mais disposta a debater transparência pública e participação social. Ele estava certo. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) buscava um assessor de coordenação digital do gabinete, e ele assumiu o posto. Ali surgiu a demanda pela Gestão Urbana, plataforma descrita no primeiro parágrafo deste texto.
A esta altura, a Jogo12 não tinha mais esse nome e o Núcleo Digital ainda não existia como empresa. O trabalho era assinado pela assessoria digital da SMDU, a partir de onde Vini conseguiu “hackear” a Prefeitura, como ele diz. Era preciso encarar as plataformas e sites como um serviço digital de governo (a Gestão Urbana é exatamente isso: um mapeamento colaborativo onde o cidadão pode acrescentar pontos no mapa e apontar problemas ou soluções). O gabinete de comunicação resistia à ideia, com medo de choverem críticas, mas a experiência mostrou o contrário — que o ambiente digital qualificado também leva à participação qualificada. Claro que não está imune a “trolls” (gente geralmente agressiva, geralmente anônima, que inunda a rede com comentários abusivos), porque é a internet, mas os resultados foram muito melhores do que o temor inicial fazia parecer.
Hackeando a metrópole A habilidade “hacker” (capacidade de desvendar e reconstruir códigos de um sistema, fazendo com que realize operações ainda não programadas) de Vini seria especialmente útil na prefeitura paulistana. A plataforma Gestão Urbana estava aprovada, mas não havia tempo hábil para a burocracia de contratação de programadores e designers. Vini, aproveitando sua experiência com comunidades de software livre, conseguiu subir um site provisório, já conectado com as redes sociais, lançando assim as bases para o desenvolvimento dos serviços digitais de governo, que foram produzidos depois.
A agilidade e os custos baixos da criação da plataforma são resultado do uso de softwares livres no trabalho. Diferentemente do software proprietário, o livre não é necessariamente vendido. É necessário investimento para o desenvolvimento inicial do software, sim, mas a partir deste ponto a realização de uma cópia custará zero reais – aliás, como todo software. O trabalho principal de uma empresa de software livre é customizar plataformas e programas para os objetivos de seus clientes.
O mecanismo foi usado na prefeitura de São Paulo, mas é parte do modus operandi do Núcleo Digital, que em seu site lista quatro vantagens do software livre:
1. Economia: o cliente só é paga pelo desenvolvimento ou adaptação do programa às suas necessidades. Não há venda ou aluguel de licença.
2. Independência: o cliente não fica atrelado à empresa que desenvolveu o software. Como o sistema é aberto, outros desenvolvedores podem também colaborar.
3. Eficiência: é comum o desenvolvimento de comunidades ao redor dos softwares livres. Normalmente, este grupo é mais ágil e criativo para encontrar e corrigir questões do que seria uma empresa com seus poucos programadores.
4. Segurança: o sistema pode ser auditado a qualquer momento, é possível entrar no cerne do programa e saber como ele funciona e por onde as informações circulam por ele. Isso é fundamental se falamos de transparência pública e dados abertos.
No caso da Gestão Urbana, foi relativamente simples encontrar plataformas base para o projeto. Mais difícil foi garantir a equipe necessária com pouquíssimo recurso. Começaram o Café Hacker para dar conta dessa demanda, novamente hackeando na lógica burocrática da prefeitura. A ideia consiste em abrir as portas da SMDU todo dia depois das 17h, convocando os interessados a participar de um laboratório de desenvolvimento da plataforma em formação. Isso criou uma comunidade de colaboração ao redor do projeto. A metodologia deu certo, a Controladoria Geral do Município gostou e passou a tocar o processo, mantendo até hoje o nome Café Hacker para uma série de encontros onde submete à contribuição social as plataformas em desenvolvimento pela prefeitura.
O Gestão Urbana foi um sucesso, ao todo, os canais criados para a participação receberam mais de um milhão de visualizações e quase 5 000 contribuições online, efetivamente orientando a realização do Plano Diretor atual. No processo, diversas outras secretarias se aproximaram do grupo, pedindo também plataformas e ferramentas para suas demandas. Realizaram cerca de uma dezena de ações para outros órgãos da prefeitura. A Secretaria de Planejamento (Sempla) gostou do trabalho e os convidou para criar um mecanismo dentro da gestão que desse conta da demanda das múltiplas secretarias. Toparam.
A princípio, seria um laboratório da Prodam, empresa pública de TI vinculada à Sempla. Tentaram alguns meses este trabalho, até que o conflito entre as lógicas do Digital e da TI ficou evidente. Grosso modo, os dois são ondas de inovação que transformaram a forma como lidamos com nossos computadores — a TI, mais antiga, foca principalmente na construção de tubos e conexões, enquanto o Digital se preocupa em o que é possível fazer com essa estrutura física.
“Um site TI é um fim em si mesmo”, diz Maria Shirts, escritora e articuladora do Núcleo Digital. Por exemplo, se a Secretaria de Cultura precisa expor suas ações e usa a lógica da TI, faz um página com dúzias de links, cheia de informação e sem priorização. O usuário iniciante fica perdido e precisa desvendar os caminhos necessários para encontrar o que busca. Comparativamente, numa iniciativa com a lógica Digital, os sites são mais enxutos e propositivos, apontando um caminho de navegação sem tantos links. O design é focado na experiência do usuário e não na necessidade de colocar tudo em um lugar só.
A tentativa de criar um braço digital dentro da Prodam apesar dessa, digamos, incompatibilidade de filosofias (digital e de trabalho) desgastou a relação do grupo com a Prefeitura. Paralelamente, convites para outros trabalhos foram aparecendo e eles decidiram, em meados de 2014, sair da Prefeitura e começar um caminho próprio como empresa. Seriam, a partir dali, somente o Núcleo Digital, uma startup cívica.
Trabalho em uma startup cívica
Eles são uma empresa especializada em participação política através da internet. Eles estão instalados na Vilynda, um espaço de coworking que dividem com outras iniciativas em Pinheiros, São Paulo.
O primeiro cliente da recém assumida empresa foi a Rede Sustentabilidade, que depois se coligou com o PSB. O ano era 2014, antes do acidente que vitimou o então candidato à presidência Eduardo Campos. Os agora hackers-empreendedores desenvolveram para o novo cliente uma plataforma participativa, com a qual qualquer interessado em construir o programa político de Marina Silva e Eduardo Campos poderia contribuir, dando ideias e votando em questões específicas. Deu certo e eles seguiram com a parceria, construíram para a Rede uma plataforma de gestão do partido, sistema onde é possível acompanhar os processos necessários para a legenda, desde a aprovação ou rejeição de novos integrantes, passando pela comunicação das propostas até a cobrança online das contribuições dos membros.
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Atualmente, o Núcleo Digital toca em média três projetos por vez. No momento, estão desenvolvendo a Rede Cultura Viva, uma plataforma para mapeamento cultural do MinC; o LoginCidadão, um software livre para integrar os serviços públicos (uma espécie de acesso único a todos os serviços online de um governo) que já é usado pelo Estado do Rio Grande do Sul; e a Plataforma Brasil, que discute a reforma política e foi encomendada pelo ITS.
O Núcleo Digital é formado pelos seguintes colaboradores (eles não gostam de se designar funcionários) e atuação: Vinicius Russo na articulação e CEO; Lucas Pirola na programação e CTO; Jessica Tarasoff em experiência de usuário e design; Maria Shirts em comunicação e articulação; Talita Bazetto em coordenação de projetos e finanças; Leonardo Ruffus em inovação e experimentação e Natascha Symanski, marketing e estratégia.
Além dessa equipe fixa, a startup conta com uma rede de freelancers para cobrir eventuais aumentos de demanda. Os serviços prestados pela empresa são: desenvolvimento de plataformas/aplicações de participação, controle social e transparência; desenvolvimento de software por demanda; desenvolvimento de sistemas de cobrança; formação em inovação tecnológica e política e elaboração de conteúdo digital.
Hackear Brasília Vini considera que o diferencial de sua empresa é tanto o acúmulo de diversas ferramentas em software livre, que lhes permite criar soluções em tempo curto e a um custo menor, quanto a proposição política progressista que, segundo ele, atrai clientes também em busca de inovações democráticas. Ele fala do papel social que acredita poder desempenhar com a sua empresa:
“O contexto atual de radicalismo e retrocesso, simbolizado pelo Congresso, está nos levando a buscar novos contrapesos. Queremos trabalhar por uma democracia melhor, desenvolver alguma solução para tirar nosso sistema político desse risco atual”
Para Vini e seu grupo, esse “o que queremos” já se transfigurou em trabalho real. Uma nova ideia começou a tomar forma nos chamados Encontrões Hacker, que já ocorreram no Rio Grande do Sul e no Ceará. Em um deles, este ano, foi lançado o Mapas Culturais, uma das principais plataformas desenvolvidas por estes laboratórios. Vini pretende ser um dos articuladores da rede Hackers BR, que reúne ativistas brasileiros visando articular políticas digitais, sempre com um pé na produção de novas plataformas. “O problema é o sistema político, certo? E o hacker é aquele que cria novas possibilidades em um sistema. Então, vamos tentar”, diz ele.
Ainda sem uma fonte estável de financiamento, a rede Hackers BR começa com o investimento de horas de trabalho do Núcleo Digital e do Hacklab, dois grandes laboratórios em atividade no país. “Algumas vezes parece super factível e outras bem utópico, mas essa é a graça. Estamos na etapa de ativar a comunidade e fazer as conexões necessárias para que ela alcance uma voz a altura do seu sonho”, afirma Vini.
A ideia é desmembrar as ações, deixar o Núcleo Digital focado na prestação de serviços e levar à rede o papel de luta política. Assim, cresce atrelando inovação tecnológica à inovação política. A startup quer ir, dessa forma, além do desenvolvimento de softwares para se tornar uma protagonista no desenvolvimento de uma democracia digital no país.
Este artigo foi originalmente publicado em DRAFT