Eleito um dos Top Voices 2019 do Linkedin, Samuel Gomes é homem, negro, gay e periférico. Sua trajetória foi extremamente marcada por reflexões sobre a diversidade no Brasil, representatividade, privilégio e lugares de fala dentro do mercado de trabalho. Ele transformou suas vivências em conhecimento e começou a compartilhá-las como palestrante, escritor e consultor de diversidade. Ao Na Prática, ele compartilha sua carreira e análises sobre como as minorias são tratadas nos ambientes profissionais.
Início de carreira
Formado em design gráfico e com mais de dez anos de experiência no setor publicitário, Samuel relembra que sua vida profissional começou antes mesmo de entrar propriamente no mercado. “Eu trabalho desde os 13 anos. Já fui auxiliar de pedreiro, trabalhei com transporte escolar e telemarketing, tudo de forma independente para ajudar em casa. Eu não tinha pretensão de fazer faculdade por não ter condições, nem aquilo fazer parte da realidade da minha família. Mas uma professora do colégio me incentivou a fazer o Enem e eu ganhei um bolsa de 50% do ProUni”, relembra.
Ele aponta que os cotistas sofriam muito preconceito na faculdade, mas que o grupo se uniu. “Nunca queriam envolver a gente em grupos e projetos. Passamos por uma segregação e isso já mostra o abismo da diversidade no Brasil. Eu fui uma das primeiras pessoas a conseguir estágio na área, por ser muito comunicativo. Com o que eu ganhava, consegui pagar a mensalidade. Era pouco dinheiro, mas foi uma oportunidade de entrar em um mercado que se vale muito mais de indicação do que de portfólio e currículo. Se você não tiver um contato, você não entra. O networking é muito importante”, revela.
Posteriormente, ele começou a aprender a trabalhar com animação e estagiou em uma consultoria. Depois de um ano, ele foi selecionado para agência Wunderman, que faz parte do grupo Newcomm fundado por Roberto Justus. “Eu era um dos únicos negros e que vinha de uma faculdade não tão conhecida. Consegui levar algumas pessoas que estudaram comigo, dando preferência para os bolsistas. Isso era uma época em que diversidade não era uma pauta muito discutida. E ter um negro LGBTQIA+ lá dentro não era sinônimo de diversidade porque eu não podia fazer escolhas de imagens que me representassem. Tudo era super padronizado”, aponta.
Percepções sobre o privilégio
Samuel Gomes conta que no processo teve que conviver com chefes abusivos, preconceituosos e racistas. “Passei por situações de me trancar no banheiro para chorar, me questionar se eu e meu trabalho eram bons o suficiente e me comparar com outras pessoas. No meu caso, é ainda mais pesado porque foi quando eu comecei a entender o que realmente significa o privilégio. Não importa se você falar três línguas, como é o caso do meu marido. Ele ainda tem dificuldade de ser reconhecido como um bom profissional”, lamenta.
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Em 2019, ele entrou na agência Bullet para trabalhar com criação, motion graphics, além de cuidar da área de cultura e diversidade e ser embaixador do projeto Responsa, um braço focado em periferias. “Depois virei o head de criação, cuidava das redes sociais da agência e participava de reuniões criativas. Tive um reconhecimento grande, mas uma coisa que chamava atenção era que só ano passado passei a ganhar o que os colegas ganhavam seis anos atrás, fazendo só a parte de motion graphics. De fato, precisamos nos esforçar e trabalhar mais para ganhar o mínimo”, pontua.
Com a pandemia do coronavírus, Samuel foi um dos profissionais que foi desligado. “Entendo o momento, mas observando a questão da representatividade do Brasil seria ingênuo não notar que todos os negros periféricos foram mandados embora. Mas sigo trabalhando com freelas, dando palestras, gerando conteúdo no meu canal do Youtube e divulgando meu livro Guardei no Armário“, detalha.
Diversidade no Brasil e falta de acesso à oportunidades
Segundo Samuel, a falta de valorização profissional de minorias está adoecendo mentalmente essa força de trabalho e faz com que esse grupo sinta que tem menos valor. O designer divide que conhece várias pessoas que ganham até 4 vezes menos do que outros no mesmo cargo, trabalhando bem mais e que a mensagem que isso passa é que o trabalho deles não é tão bom.
“Essa ideia de quem quer alcança, só vale se você for um homem, branco, cis, hétero, de classe alta. As pessoas que falam isso vivem em uma bolha restrita. Acham que suas escolhas e seu mínimo de esforço os fez chegar onde chegaram. Na história do privilégio, existe muita gente se dando mal para que outros consigam virar essas empresas unicórnios. Se essa lógica fosse real, eu seria reconhecido pelo esforço que eu tive esses anos todos, já que trabalho desde dos 13. Mas meu reconhecimento só veio agora e não fez diferença no meu poder aquisitivo, nem na minha segurança financeira”, garante.
Com a crescência dos movimentos antirracistas, Samuel Gomes analisa que mobilização é real, mas ainda pequena. “A comunidade negra está se posicionando, mostrando que não falamos só sobre assuntos de raça. Existe uma falsa ideia que só vamos falar só isso. A principal questão é questionar porque a branquitude não consume conteúdos de pessoas negras, sendo que o contrário acontece. A diversidade no Brasil existe, mas precisamos de um recorte social para lembrar que não vivemos no mesmo mundo. Esse mundo democrático não chegou para a população negra periférica. Ele ainda mata nossos corpos e nos maltrata. Como fica a saúde mental dessas pessoas que são exigidas cinco vezes mais que os demais?”, questiona.
O que poderia ser feito para melhorar?
A primeira coisa é entender que o racismo deve ser um debate dentro da pauta de pessoas brancas, não negras, segundo Samuel. “Os negros sofrem o racismo, que é uma invenção branca. Os brancos precisam pensar como acabar com essa dinâmica, que faz as pessoas chorar por falta de condições de pagar contas, de se sustentar, de ter saúde. Outra coisa é gestores e recrutadores indicarem profissionais negros, PCDs, LGBTQIA+ para vagas antes de pensarem em qualquer profissional branco. Dentro do ambiente de trabalho, isso já aumenta a diversidade no Brasil”, sugere.
Samuel aponta que não é uma questão de caridade, é sobre entender um privilégio que a pessoa teve desde cedo e a pessoa preta da periferia não. Mas isso não desqualifica o processo criativo, de uma pessoa que às vezes tem mais vivência e que vai se esforçar mais, como avalia. Ele espera que o mercado tenha feito a lição de casa e entenda que não há desenvolvimento econômico sem diversidade. Não é mais questão de gosto ter equipes diversas, garante o consultor. Ele observa que as lideranças, em geral, ainda tem um pensamento escravocrata e que é preciso repensar os modelos de trabalho e negócios.
Para jovens profissionais, o designer aponta que ainda que por mais que essa construção da identidade profissional seja dolorosa e maçante, é importante se espelhar em pessoas que vivem realidades similares às suas. “Eu sei que é difícil encontrar negros, trans, LGBTQIA+, imigrantes ou refugiados no mercado de trabalho, mas é um processo que você tem que fazer e, a partir disso, criar pontes. Encontre o seu talento e busque pessoas parecidas. Continue sempre estudando para quando as coisas voltarem ao normal, depois da pandemia, e surgirem mais empregos”, recomenda.
Outra questão levantada por Samuel é que seria positivo se o sistema valorizasse o empenho desses profissionais. “Seria ótimo se todo esse aprendizado retornasse financeiramente e se pudêssemos trazer mais pessoas de origem parecida. Não tem como ser positivo toda essa luta e esforço. Olhar para trás e ver o tanto que você lutou e a valorização foi muito pouco. Conheço profissionais muito bons que abriram mão da carreira por falta de oportunidade. Não tem um lado bom de se esforçar tanto e não ser reconhecido. Se nossas reflexões ganhassem ainda mais vozes, talvez as pessoas entendessem que ainda falta oportunidade. E enquanto os tomadores de decisão forem em sua maioria homens brancos, cis e héteros erros gigantescos vão ocorrer, como o caso da Krespinha da Bombril“, exemplifica.
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Um caminho para entender a diversidade no Brasil
Independente do formato de preferência, Samuel Gomes aponta que o ideal é consumir conteúdos criados e produzidos por pessoas negras, LGBTQIA+ e outras minorias. “Isso vale para diversos segmentos. Um exemplo é o veganismo. As pessoas negras costumam ter um poder aquisitivo menor e isso mostra outra realidade do estilo de vida. Mas brancos no mesmo nível econômico provavelmente vão se identificar mais com esse recorte. Além disso, ler sobre o assunto, convidar minorias para comentar pautas em alta, procurar, perguntar e estudar”, indica.
Ele afirma que os brancos precisam entender que o privilégio que eles possuem veio à custas de dor, sangue e perda. “O que fazemos hoje é uma reparação histórica com pessoas aliadas que entendem esse processo. Com isso, você pode melhorar sua vida e do outro, diminuir desigualdade e a violência. Se nós queremos um mundo novo e que ele seja inclusivo, diverso e equalizado, as pessoas precisam entender que a diversidade do Brasil não se limita a um único grupo. É muito mais”, finaliza.