Graças aos esforços de uma única brasileira, 2.354 pessoas foram libertas da escravidão desde 1995, um século depois da assinatura da Lei Áurea. Essa brasileira é Marinalva Dantas, auditora do trabalho e uma das maiores referências do país no combate à escravidão moderna e ao trabalho infantil.
As histórias dessa mulher e dessas causas se misturam e estão contadas no livro A Dama da Liberdade, lançado em 2015, também ano do aniversário de 61 anos de Marinalva. Foi escrito pelo jornalista Klester Cavalcanti.
A história de Marinalva teve uma influência crucial em sua carreira. Nascida em uma família muito pobre, em Campina Grande (PB), passou os três primeiros anos de vida em uma casa sem luz, água encanada ou esgoto. Por dentro, não havia banheiro ou paredes entre os quartos. Devido a uma crise grave de lombriga, foi levada à casa dos tios que tinham uma condição financeira melhor e acabou sendo criada por eles, em Natal (RN). Isso permitiu que Marinalva tivesse uma infância decente, bem diferente do que teria vivido se continuasse com seus pais.
Aos dez anos, foi visitar a família e reencontrar a mãe que já não reconhecia. Essa visita mexeu muito com ela, como contou em entrevista ao Blog ÉPOCA AMAZÔNIA. “Me dei conta de que era privilegiada e gostaria que todas as crianças – principalmente meus irmãos – tivessem um pouco do que eu tinha: a possibilidade de brincar e de estudar”. A experiência foi uma das bases para que ela crescesse como uma defensora dos mais fracos – como se define.
Marinalva entrou na faculdade de direito e passou em um concurso público para auditora fiscal do trabalho, em 1984. Pouco mais de dez anos depois, ingressaria nos primeiros grupos que saíram à caça de fazendas que mantinham trabalhadores em condições degradantes e sem direitos trabalhistas. Segundo levantamento apresentado no livro, os casos mais comuns de trabalho escravo estão em fazendas de pecuária (29% dos casos registrados pelo governo federal) e cana-de-açúcar (25%). Dezenove por cento estão em fazendas com outras lavouras, como algodão. Os estados com mais casos são da Amazônia Legal: Pará (12.761 de escravos libertos desde 1995) e Mato Grosso (5.953). O perfil desses escravos explica sua vulnerabilidade: 62% são analfabetos e 27% estudaram no máximo até a 4ª série.
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Como auditora do trabalho, enfrentou situações adversas e encontrou um cenário triste de constatar que ainda exista no Brasil. Viu fazendas em que os agricultores dormiam todos em um galpão, sem banheiro ou qualquer condição sanitária adequada. A comida era sempre escassa e quando ganhavam carne, eram sempre os piores pedaços, cheios de gordura e mal conservados. Em Marabá (PA), encontrou pedaços de carne que seriam consumidos no dia seguinte e estavam ao relento, infestados de moscas e em toras de madeira. A coloração quase preta do alimento a impressionou naquele dia.
Marinalva viu muitas crianças passando fome. E costumava dar a elas os alimentos que tinham no carro dos auditores do trabalho e da polícia federal. Encontrou um homem escravizado há dezenove anos e um menino que não sabia sua idade, pois nunca havia comemorado um aniversário. Questionado se tinha tempo para o lazer, esse menino respondeu que às vezes brincava de desmontar e montar a motosserra “cheia de pecinhas dentro”. Como conta uma passagem do livro, a auditora não sabia o que era mais triste: a criança não brincar por falta de tempo e de energia após um dia intenso de trabalho ou ter como brinquedo o mesmo equipamento que lhe roubava a infância.
Nem sempre era fácil se conter. Em muitos capítulos do livro A Dama da Liberdade, Marinalva é retratada como uma mulher forte, porém emotiva, que se comove e se revolta com o que encontra pela frente. Um dos poucos momentos em que chorou diante de um ex-escravo foi quando ele lhe contou que havia sido espancado por ter pedido um pouco de água limpa. A que tinha para beber vinha de um córrego e era amarela e barrenta. O chefe mandou que um peão, escravo como ele, fosse o autor das pancadas.
A luta de Marinalva a tornou uma personalidade conhecida. Ao longo dos anos apareceu em reportagens e deu inúmeras entrevistas. Descobriu casos de escravidão em fazendas de homens poderosos, como o deputado estadual do Rio de Janeiro Jorge Picciani. E, em 2002, a Polícia Federal encontrou em Marabá uma lista com nome de pessoas que deveriam ser executadas a mando de fazendeiros da região. Marinalva Dantas era um deles. Meses antes, ela comandara uma operação em uma fazenda de pecuária na região.
Em 2004, Marinalva foi para Brasília ser diretora da Divisão de Articulação de Combate ao Trabalho Infantil. O cargo mais burocrático do que prático não a agradou e ela voltou a Natal, onde até hoje é auditora. Olhando para trás, vê que a dedicação total à carreira teve impactos grandes também em sua vida pessoal, como o fim do casamento, desentendimentos com os filhos por passar tempo de mais viajando e até uma síndrome do pânico.
Apesar de tudo isso, o trabalho a realizou sempre.
Hoje, espera que todo o esforço tenha levado mais conscientização aos brasileiros para que não aceitem as barbaridades cometidas com trabalhadores sem direitos. E se diz uma otimista em relação ao fim da escravidão de uma vez por todas no país. “Eu não combatia o trabalho escravo e infantil até saber que isso existia. Depois que você descobre, quer que acabe. Não dá para aceitar que isso ainda aconteça na geração de nossos filhos e netos”.
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Confira abaixo trechos da entrevista que Marinalva concedeu ao Blog ÉPOCA AMAZÔNIA.
A senhora nasceu em uma família pobre, mas foi criada por tios com uma boa condição financeira, foi à faculdade e seguiu uma carreira voltada aos direitos humanos, principalmente dos mais pobres. Sua história pessoal influenciou essa escolha?
O fato de eu ter vindo da pobreza influenciou muito minha carreira. Fui morar com meus tios em Natal com apenas três anos, então, não tinha lembranças da minha vida anterior. Apenas aos 10 anos retornei a Campina Grade e reencontrei minha mãe, que eu nem reconhecia mais. Cresci em um ambiente de opulência e ver a casa da minha família foi chocante. Quando cheguei à cidade, fiquei feliz de ver muitas crianças que poderiam brincar comigo. Mas a maioria delas precisava trabalhar para ajudar a família. Faziam sapatos, potes de barro, carregavam água ou ajudavam no comércio, por exemplo. Me dei conta de que era privilegiada e gostaria que todas as crianças – principalmente meus irmãos – tivessem um pouco do que eu tinha: a possibilidade de brincar e de estudar.
Já adulta, ouvia histórias de homens que deixavam as famílias para trabalhar em outros estados no Norte e do Nordeste e não voltavam mais. As pessoas acreditavam que eles encontravam outras mulheres e tinham outros filhos. Na primeira vez que entrei em uma fazenda e vi os escravos que há anos não podiam voltar pra casa, senti uma grande revolta. Aqueles pais nunca abandonaram seus lares. Estavam lá sem escolha. Isso me motivou a fazer o que fosse possível para acabar com essa situação.
Como é possível que, mais de 120 anos depois da abolição da escravidão, ainda persista esse regime de trabalho no Brasil?
Isso se sustenta porque é muito lucrativo. Esses senhores de escravos ficam mudando de estratégia para burlar a lei, enganar a polícia e os consumidores. Há por exemplo, fazendeiros que assinam a carteira de trabalho das pessoas, mas não seguem qualquer norma de trabalho. É só o papel que está lá. Acham que assim não poderão ser enquadrados como empregadores de escravos.
Enquanto eles puderem manter isso, vão fazer. Já fui a uma fazenda exportadora que nunca tinha registrado nenhum empregado e sonegava muitos impostos. Então, o dono fica apenas o lucros, sem nenhum encargo. Para muitos donos de terra, a estratégia é dizer que não sabiam de nada. Que era o gerente quem cuidava dos outros funcionários. Então, nosso trabalho é ligar os pontos entre o proprietário da terra e os escravos.
Você sofreu ou sofre muitas ameaças pelo trabalho combativo?
Sim. Até hoje. Nesse final de semana mesmo, estava em uma feira livre com a equipe da tevê Globo mostrando crianças e adolescentes trabalhando nas barracas. Isso é trabalho infantil, é proibido. Alguns feirantes mandaram a gente sair de lá, dizendo que tinham muitas facas. Quando disse que eles tinham mão de obra ilegal, me responderam que se esses jovens não estivessem ali, estariam no tráfico. É uma ignorância da parte deles pensar assim.
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Este artigo foi originalmente publicado em Época Negócios