“Todo professor é um potencial líder”

Kamila Nunes Silva
Kamila Nunes Silva / Acervo pessoal

Construir uma carreira acadêmica, trabalhar com propósito, ser o canal para aprimorar a cultura organizacional de uma empresa para torná-la mais diversa e, na esteira disso tudo, ainda implementar sonhos, constantemente. Esse poderia ser um resumo de um plano a longo prazo para muitos profissionais, mas já é a realidade de Kamila Nunes da Silva aos 32 anos. 

Professora e mestre em História, a mineira se encontra como gerente de projetos educacionais na Politize, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que tem a missão de formar uma geração de cidadãos conscientes e comprometidos com a democracia. Com objetivos em comum com o lugar onde hoje trabalha – e no qual lidera o Núcleo de Educação Básica , Kamila contou ao Na Prática sobre como as experiências em sala de aula a ajudam a construir um diálogo sólido com secretarias de educação no dia a dia, a fim de levar a pauta da cidadania para o Ensino Médio de escolas públicas. Ela falou, também, sobre a perspectiva de ser uma mulher negra e periférica em posição de liderança. Confira!

Da educação para uma nova perspectiva de vida ao encontro com o Terceiro Setor

Kamila nasceu em Governador Valadares, no interior de Minas Gerais e passou metade da vida envolvida com educação básica. Sempre gostou de estudar – cursou o ensino fundamental em escola pública –, tirava boas notas e, quando estava no oitavo ano, uma professora falou sobre a possibilidade de cursar o ensino médio por meio de um curso técnico o Curso Normal. “Era um curso profissionalizante, para ser professora. Eu fiz prova e consegui uma bolsa”, conta. A partir daí, surgiu o interesse pela educação que – ela ainda não sabia – definiu seus caminhos a partir de então.

No período de estágio, enquanto cursava o Magistério, Kamila já estava duplamente em sala de aula: como estudante e como monitora de educação infantil. Não faltou incentivo em casa – aliás, foi ela quem, aos poucos, também foi estimulando os pais. “Na minha família não tem ninguém da área da educação. Meu pai é pedreiro, minha mãe é faxineira e os dois terminaram o ensino médio depois que eu estava estudando. Minha mãe fez o ensino médio nos mesmos anos que meu irmão e meu pai fez EJA (Educação de Jovens e Adultos), terminou recentemente. Embora eles tivessem estudado só até a quarta série, eles sabiam que a forma de eu ter uma vida diferente da deles seria através da educação.”

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Kamila chegou a cursar um ano de Psicologia, mas acabou optando por concluir sua formação com um bacharelado em Humanidades e Licenciatura em História  na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), instituição pública de ensino superior sediada na cidade mineira de Diamantina.      

As experiências em sala de aula a levaram a pesquisar a condição docente dos professores de Educação Básica em Diamantina, tema que virou seu trabalho de conclusão de curso (apresentado em um congresso sobre a condição docente de professores da América Latina que aconteceu no Chile). Na mesma época, foi bolsista da Capes no PiBID (Programa de Política Nacional de Formação de Professores do MEC) e começou a se interessar por também pesquisar a cultura política e as relações de poder (tema que desenvolveu no mestrado, entre 2017 e 2019, na Universidade Federal de São João del-Rei). Por dois anos, Kamila também integrou o Programa de Desenvolvimento de Lideranças do Ensina Brasil, em Caruaru, no Pernambuco. A iniciativa foi, nas palavras dela, a “virada de chave” para conhecer o Terceiro Setor.

O olhar docente ajudou a transformar o ensino médio com o Politize

Até meados de 2019, Kamila considerava carreira na área acadêmica, ao mesmo tempo em que tinha voltado para a sala de aula durante o mestrado porque, por mais que gostasse de ser pesquisadora, sentia falta da experiência docente. “Estava escrevendo a dissertação, mas não conseguia enxergar um propósito porque, enquanto construía a pesquisa, não sabia quando aquilo, de fato, ia causar uma reflexão e uma transformação significativa na vida das pessoas”, diz ela. 

Após concluir a defesa, enquanto pensava se seguiria no doutorado, ela se interessou por uma oportunidade no Politize (em maio de 2020) que, inicialmente, era para criar planos de aula sobre cidadania. “Eu estava naquele contexto de pandemia, dando aula só [no ensino] remoto, com tempo e entendi o contexto do projeto, quis participar. Enquanto estava como voluntária, surgiu uma vaga.”      

O Politize tinha começado um ano antes, a desenvolver projetos para o Novo Ensino Médio  que prevê uma mudança estrutural na oferta do Ensino Médio para os próximos anos ao exigir que aproximadamente 1.200 horas da carga horária total seja oferecida aos estudantes por meio de  itinerários e disciplinas eletivas escolhidos pelos próprios estudantes, flexibilizando assim o currículo e abrindo oportunidade para novas ofertas de conteúdo e formação escolar.

Com essa janela de oportunidade o Politize através do Programa Escola da Cidadania Ativa atua levando a pauta da cidadania para o Ensino Médio público, apoiando as Secretarias de Educação na implementação do Novo Ensino Médio, ofertando materiais pedagógicos  e formando professores e jovens líderes de classe.     

Kamila começou na organização como Analista Pedagógica, já para atuar no projeto que envolvia as parcerias para essa reforma por meio do núcleo de Educação Básica da organização e, em cinco meses, passou a ser Gerente de Projetos Educacionais.  Na prática, como gestora dessa área, cabe a ela apresentar os itinerários formativos propostos pelo Politize para as secretarias de educação de vários estados brasileiros e trabalhar junto às pastas para discutir como implementar esses conteúdos. Desde que entrou para o time, ela já apresentou projetos para 21 secretarias, das quais 10 estão em vias de implementação. Cabe também a ela cuidar de parcerias técnicas, acompanhar e validar materiais pedagógicos. 

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Assim como Kamila, todos os demais profissionais da organização que fazem parte do Núcleo de Educação Básica têm experiência em docência, o que ajuda a ter mais clareza dos objetivos de educadores e estudantes em suas perspectivas formativas. Mas, no caso dela em particular, enquanto gestora, a rotina de trabalho também requer um perfil com habilidades complementares. “Escuto a dor do professor, ao mesmo tempo em que estou com parceiros técnicos, em contato com várias pessoas de frentes diferentes e a própria secretaria de educação. Consigo fazer tudo isso até chegar na sala de aula e alcançar o objetivo final que é o estudante”, destaca.

Uma agente de mudanças, seja na sala de aula ou dentro da organização     

Como forma de se preparar para abraçar os desafios do cargo, Kamila optou por fazer um MBA em Gestão de Projetos (que, atualmente, cursa como bolsista da Universidade de São Paulo). A parte mais desafiadora de seu trabalho é conseguir assinar acordos de cooperação e, enfim, formalizar parcerias, porque todo o processo é moroso. “Passa por uma questão de convencer de que o produto que estão entregando faz sentido no currículo”, pontua. Já o lado mais empolgante é ver, na outra ponta, o projeto tomando forma e atingindo, afinal, o público-alvo. Um exemplo disso foi o lançamento de um laboratório de verificação de fatos para a disciplina eletiva intitulada Informação e Desinformação, com uma turma online. 

Com uma trajetória que inclui oportunidades de expor pesquisas fora do país, duas formações, um mestrado, um MBA em curso e a validação em âmbito nacional de projetos que ela ajudou a gestar, quando questionada sobre qual experiência em especial fez seus olhos brilharem, Kamila opta por destacar um episódio de 2018, enquanto lecionava em Governador Valadares.

“Tive uma turma de oitavo ano, de [estudantes] repetentes, que dava vontade de desistir de ser professora. Todos os professores já tinham desistido dessa turma. Mas comecei a trata-los de forma humanizada e dar aula através de projetos, fora da sala de aula, em vez da forma tradicional. Estudamos as eleições de 2018: eles criaram um programa de governo, fizeram campanha de acordo com as regras do sistema eleitoral”, conta a mineira, emocionada. “Eu os respeitava e eles me respeitavam, mas esse respeito foi conquistado”.

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Não por acaso, ela acredita que, no Politize, tenha se conectado com seu propósito maior, já que une os 16 anos de experiência em sala de aula (que permitem pensar “de educador para educador”) à paixão por pesquisa, que é colocada em prática ao planejar grades curriculares. A função também contempla o lado líder que, apesar de estar desenvolvendo com o MBA e as próprias responsabilidades do cargo, já desempenhava à frente dos estudantes. “Não costumam nos enxergar dessa forma, mas vejo que todo professor é um potencial líder. Você tem que ter habilidade de liderança pra gerir uma sala com 40 pessoas, com ideias diferentes”, afirma. 

Em paralelo, Kamila também destaca outro tipo de transformação da qual participa ativamente, que tem a ver com suas bases. Quando se somou ao time, encontrou uma equipe majoritariamente branca, mas, aos poucos, foi se engajando para mudar esse cenário.

“Estar à frente de um programa com o potencial que ele tem e ser mulher, negra e periférica faz total diferença, porque as pessoas que geralmente ocupam cargos como o que eu ocupo hoje não são. Hoje a gente vê uma mudança na cultura organizacional do próprio Politize, com quase metade dos colaboradores que se autodeclaram não-brancos.”

 

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