Quando se fala sobre o futuro das organizações, “transformação digital” é um termo frequente. Sua aplicação, no entanto, varia a ponto de ser difícil definir exatamente o que ele significa.
Para Brian Scherman, consultor da Bain & Company, muitos o utilizam para englobar aspectos que envolvem formas diferentes de trabalhar, uso de novas tecnologias, como dados para tomada de decisão, automatização de processos, reforma de plataforma tecnológica e novas estratégias de negócio.
“Tem duas coisas diferentes. Uma é o que as empresas gostariam e outra é o que, de fato, significará para elas”, afirma. Embora, segundo ele, a concepção comum não esteja errada, a realidade é diferente, e inclui outros pontos a serem pensados anteriormente. “É tudo isso e não é nada disso, também”, brinca.
Um projeto de transformação digital, na verdade, está muito mais relacionado com uma mudança cultural das companhias. Os processos que as pessoas costumam entender como “sinônimos” dessa transformação só podem acontecer como consequência da mudança na forma de fazer negócio, segundo o consultor.
“Isso significa interação diferente entre as pessoas, menos hierarquização, menos burocracia, trabalhar de uma forma diferente, ter muito menos planejamento, muito mais interação entre pessoas e muito mais adaptação rápida.”
Com esse entendimento claro, quando atuam em um projeto de transformação digital, os consultores acabam apoiando diretamente a mudança de mindset, indispensável para que o resto ocorra. Um de seus trunfos, porém, é que, afastados do cotidiano da empresa, não possuem “apego” aos processos antigos. Assim, conseguem desafiar os paradigmas da organização, um dos pontos mais importantes para a consolidação das mudanças.
Nesse contexto, enfrentam resistência por parte dos profissionais. “Conseguir convencer as pessoas e engajá-las exige bastante conhecimento de causa e clareza sobre os conceitos”, conclui Brian.
Na prática, uma transformação da cultura
O objetivo final de um projeto de transformação digital é utilizar novas tecnologias. No entanto, para incorporá-las com perfeição no negócio, é preciso ter uma forma de trabalhar e de interação específicas.
As maneiras tradicionais de levar as organizações, com departamentos secionais (“finanças cuida só de finanças”), não possuem a agilidade necessária para que as mudanças se concretizem no modo de trabalho. Um exemplo é a comunicação entre a equipe, que acaba tendo mais barreiras burocráticas nos moldes convencionais do passado.
Leia também: Como a cultura sustenta a estratégia de um negócio (ou não)
De outro lado, em uma empresa que planeja passar por uma transformação digital, é necessário promover interações rápidas, aplicação de conceitos Ágeis, integração da tecnologia à área de negócios e de conceitos de DevOps (um derivado dos termos “desenvolvimento” e “operações”). Além disso, a estrutura mais eficiente se dá com base em times interdisciplinares, com objetivos específicos, de acordo com Brian – os chamados “times ágeis”.
“A grande dificuldade dos clientes é sair desse mindset antigo de áreas funcionais, de alta previsibilidade, e começar a aceitar e abraçar incertezas.”
Passos seguintes
Segundo o consultor da Bain, após a transformação de mentalidade, a primeira etapa, uma segunda fase consiste em definir o que a transformação digital significará para o negócio da empresa. Ou seja, quais novas tecnologias serão aplicadas (ou desenvolvidas) – “para levar a empresa para outro nível de negócio e colocá-la para competir tanto com o maior concorrente histórico, quanto com as startups”.
Entre a gama de opções, a companhia pode perceber que precisa mudar a forma com que interage com os clientes, que desenvolve produtos ou a maneira que entrega seus serviços, por exemplo. De qualquer forma, Brian destaca que o caminho passa necessariamente pelo aproveitamento de dados e modelos estatísticos para tomada de decisão, que, por vezes, pode ser automatizada.
Depois do apoio na segunda etapa, de priorização, o papel da consultoria avança para a parte de “como” implantar as novas tecnologias. “O que seria para a empresa seguradora A aproveitar canais digitais para conseguir clientes, ou o que significa para a empresa B ter uma plataforma tecnológica que alcance as aspirações que ela tem para o futuro”, exemplifica ele. Aqui a consultoria estratégica traz tanto o desenho do “como”, quanto traz o know-how para a execução.
Modelo de um projeto de transformação digital
Brian conta que uma das experiências mais emblemáticas que teve de um trabalho relacionado ao tema foi o case de uma empresa de serviços financeiros que nascia já com o objetivo de ser 100% digital. O projeto se desenrolou em, basicamente, quatro etapas.
1ª etapa: construção de um modelo operacional
“É o elo entre estratégia e execução; enquanto a estratégia aponta ‘o que’, o modelo operacional aponta ‘como’ se executa”, explica.
Aqui, a consultoria se dedicou a desenhar a organização do futuro, incluindo organograma e formas de trabalhar, ritos e fóruns, governança, plano de carreira, incentivos, métricas e orçamentação, entre outros.
Além da descrição do que a companhia seria no futuro, trouxe também um passo a passo de como a empresa chegaria no modelo definido.
2ª etapa: definição de uma proposta de valor
Na segunda parte do projeto de transformação digital, a Bain apoiou a definição e a priorização de funcionalidades do produto do seu cliente.
“Mais importante, ajudamos a criar um processo de desenvolvimento de produtos robusto, porém simples e com foco absoluto no cliente”, destaca Brian.
O processo envolve diversas etapas do desenvolvimento do produto:
- levantamento de ideias;
- priorização de ideias;
- aprofundamento;
- criação de protótipos;
- teste de protótipos e produtos;
- desenvolvimento da solução e
- revisão e aprimoramento constantes
3ª etapa: desenvolvimento da plataforma tecnológica
“Nessa frente ajudamos o cliente a desenhar a plataforma que sustentaria suas ambições de negócio, desenhamos princípios de arquitetura de sistemas com base nas mais inovadoras e robustas plataformas tecnológicas e nas boas práticas de mercado mais recentes”, relata o consultor da Bain.
“Quando falamos de tecnologia, há muitas tendências, como uso de APIs, Microsserviços e Cloud, cuja aplicação ainda não é completamente compreendida pelas empresas. Embora a maior parte dos profissionais considere que entenda as implicações desses conceitos, é muito raro que tenham clareza sobre as consequências deles para as áreas de negócios”
Além disso, o time foi responsável por entrevistar e apoiar a escolha de fornecedores pelo cliente.
4ª etapa (bônus): “coach cultural”
A última etapa, apesar de não prevista oficialmente no projeto, foi uma consequência natural, segundo Brian. “Um papel muito menos formal, mas absolutamente imprescindível para o sucesso das demais frentes.”
Agindo a fim de promover um “coach cultural”, a equipe da Bain trabalhou para desafiar paradigmas da liderança sênior e ensinar sobre a importância de “se desapegar” de conceitos que, embora antes fossem muito importantes, não se aplicam à atualidade (nem para o sucesso ambicionado pela companhia).
Ainda que os líderes entendam sobre os aspectos relevantes para o processo, como conceitos Ágeis, mentalidade de tomar decisões com base em dados, uso de modelos preditivos, automação dos processos, etc. prender-se à forma de trabalho antiga pode impedir que as mudanças, de fato, aconteçam, afirma Brian.
“Nesse ponto, nossa missão é lembrá-los constantemente do porquê escolheram adotar as novas práticas de gestão”, diz. “E porque os trade-offs valem a pena e são essenciais para a organização.”