A missão parece enorme – atacar a vulnerabilidade social brasileira em geral –, mas pragmatismo é um dos traços mais marcantes de Ralf Toenjes. “Reinserir alguém na sociedade demora e a pessoa precisa viver dignamente, ter uma renda”, diz. “Mas não conseguiríamos empregar o Brasil inteiro.” O jeito foi cofundar a ONG Renovatio em 2013, que ele define como uma plataforma de modelos de projetos sociais que tenham impacto social e que sejam escaláveis a nível nacional.
A organização nasceu no Insper, em São Paulo – onde, na época, Ralf estudava Economia e Administração – e estabeleceu sua credibilidade com a primeira iniciativa, o Projeto VerBem. Criada em parceria com os estudantes Fabio Rodas Blanco, Bruna Vaz e Eduardo Bastos Borim, hoje tem três pessoas em tempo integral na equipe (incluindo Ralf) e cerca de 15 voluntários.
A missão do Projeto VerBem, por enquanto o único da Renovatio já fora do papel, é produzir óculos de grau de baixo custo, distribuí-los gratuitamente para quem precisa e ajudar quem confecciona os pares no processo, como moradores de rua, jovens de comunidades carentes e refugiados.
As peças custam entre 25 e 30 reais e são fabricadas em partes pela ONG alemã OneDollarGlasses, que tem a Renovatio como representante brasileira.
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Renovatio: como começou
Ralf e Fabio conheceram o OneDollarGlasses no final de 2013, na edição mundial de premiação promovida pela Enactus, organização social da qual Ralf já fazia parte.
Ficaram impressionado com os números que a ONG apresentou – 150 milhões de pessoas pelo mundo têm sérios problemas de visão e não têm meios para pagar um óculos – e com a criatividade da solução que propunham, que envolve arame sueco, plástico francês e lente chinesa.
Para agilizar o processo de entrega, lentes com os mais variados graus de miopia acompanham as armações e podem ser encaixadas na hora. No caso de astigmatismo, são enviadas depois do diagnóstico.
Ainda sem o projeto definitivo para começar a Renovatio no Brasil mas interessados nessa causa, a dupla foi pesquisar a situação visual brasileira. Descobriram que comprometimento visual é uma das maiores razões para evasão escolar no país e que 79% dos municípios não têm oftalmologista disponível pelo SUS.
Assim, resolveram investir na ideia. Arrecadaram 45 mil reais em um crowdfunding e tiveram o Bank of America como primeiro patrocinador e começaram a produzir em maio de 2014.
Hoje, contabilizam mais de 15 000 óculos distribuídos em 17 estados brasileiros – tudo confeccionado por pessoas em situação de vulnerabilidade social, fechando assim o ciclo virtuoso que queriam.
Se depender de Ralf, no entanto, ainda há muito chão: ele quer distribuir 1 milhão de pares até 2021.
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Mutirões
Atualmente há duas unidades de produção em São Paulo, uma no Instituto da Visão e outra na comunidade Vila Nova Esperança. São seis funcionários, que produzem 140 pares de óculos por mês. Após passar por um processo seletivo que inclui testes, entrevistas e orientação vocacional, os selecionados criam em conjunto com os integrantes da ONG uma trilha de desenvolvimento individual.
“A pessoa trabalha no projeto, que gera renda para ela, causa impacto, estuda à noite e participa dos projetos educacionais aos sábados”, explica o jovem. Visitas a museus e universidades fazem parte do roteiro. “A ideia é tirá-la do ambiente em que ela está, seja um albergue, uma comunidade ou um abrigo para moradores de rua, e mostrar que existem coisas diferentes.”
A rotina é puxada. Olhando sua agenda, Ralf não vê nenhum fim de semana livre até junho. Há pelo menos um mutirão por semana, quando um ônibus especial – convertido em dois escritórios móveis e com oftalmologistas a postos – passa o dia estacionado em áreas carentes oferecendo exames e pares de óculos gratuitos.
A ideia de conceder um item de necessidade tão simples acaba conquistando. Mesmo o motorista do veículo ofereceu uma diária mais barata a Ralf ao se lembrar da própria infância, quando ganhou um óculos do chefe da mãe.
E o próprio ônibus, patrocinado por uma empresa, custou bem menos que o preço de mercado, em parte graças às habilidades de barganha que Ralf vem desenvolvendo. “Aqui a gente brinca que é tudo preço ONG, preço de custo ou preço pro bono”, ri.
Desafios
A ideia de empreender sempre esteve na cabeça dele, que faz parte da rede Líderes Estudar e veio do Rio de Janeiro para estudar Direito na Universidade de São Paulo. O background jurídico complementa o diploma duplo em Economia e Administração, que obteve no Insper em 2015. “O que me motiva sempre foi o desafio”, diz ele aos 24 anos.
Entender os meandros de fazer um negócio social no país, explica, é um aprendizado contínuo. A falta de uma legislação específica para esse tipo de empreitada é um obstáculo na hora de trazer para produtos, por exemplo, e às vezes na mesa de reuniões.
“Tudo é um desafio, na verdade: trazer tecnologia de fora, uma legislação ótica que é da década de 1930, conseguir certificações”, diz. “E sempre tem a desconfiança em relação à uma ONG com produtos, um negócio social com lucro revertido, porque o Brasil ainda não tem essa cultura nem essa legislação.”
O modelo de negócio atual é composto por doações empresariais e individuais e pela venda tanto de óculos para o consumidor de alta renda e quanto de pacotes para empresas que compram o serviço de doação e produção dos pares.
As companhias ganham incentivos fiscais no processo e, quando os mutirões ocorrem dentro delas, ganham também em produtividade: o Vision Impact Institute estima que a produtividade de um trabalhador pode aumentar 20% quando um problema de visão é tratado.
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Gestão
Sem contar estágios em escritórios de advocacia, a Renovatio é o primeiro emprego de Ralf, que está aprendendo a ser funcionário e dono do negócio ao mesmo tempo e na prática – e ainda descobriu que precisa de óculos sem querer, ao ser examinado em um mutirão.
“Brincamos que já erramos muito e acertamos muito também: foram horas de conversa, ajustando modelos e dando feedback, e fomos aprendendo”, fala sobre o começo. Ele vê empreender com sucesso, no entanto, mais como uma questão de dedicação. “É preciso ter energia, inteligência, expertise e muito foco, mas não tem mistério.”
A parte da expertise é especialmente importante, visto que a Renovatio investe em várias frentes diferentes – um restaurante social e uma metodologia para creches informais estão nos planos próximos – e pretende expandir ainda mais suas áreas de atuação. “Não sabemos fazer óculos, não sabemos fazer restaurante, não sabemos fazer espaço de desenvolvimento infantil”, fala. “Então conversamos com especialistas para aprender.”
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Motivação
A Renovatio também aposta em estreitar as relações governamentais para chegar em rincões cada vez mais distantes. “Agora podemos nos sentar com o governo, porque estamos estabelecidos e conseguimos mostrar que o modelo funciona mesmo”, diz. “Se o que fazemos faz sentido, tem impacto e é motivador, não tem porque não fazer.”
Razões para dormir pouco e não ter férias não faltam. Da jovem que sonha em ser médica e era a melhor aluna da escola mesmo com 8 graus de miopia – ela copiava a lousa de pertinho, no intervalo – à senhora que perdeu o medo de sair de casa porque agora enxerga os buracos na rua, a equipe traz novas histórias inspiradoras de cada mutirão.
Ralf se empolga com uma delas em particular. Às margens de um rio no Pará, lembra, um senhor colocou os óculos e começou a chorar. “Ele dizia: ’Eu não preciso mais subir, eu não preciso mais subir’. Era um coletor de açaí e precisava escalar os dez metros da árvore para ver se o fruto estava bom”, conta. “E é só um óculos, sabe?”