Valéria Vilhena acorda todos os dias e vai religiosamente para o seu trabalho como professora de turmas de alunos com deficiência. É um trabalho intrincado, com minúcias que escapam à realidade comum do ensino. Lá, além de lecionar, ela possui atribuições no Conselho Escolar, uma relação próxima com as famílias dos estudantes e uma porção de opiniões fortes contra a estrutura da educação de Saquarema, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. “Acho difícil que oportunidades apareçam pra mim porque sou sempre muito combativa”, diz ela.
Seus cabelos cinzentos curtos, seu modo sereno de falar que mistura o Rio a Minas e sua evidente experiência conseguida ao longo de 64 anos sempre detém a atenção. Ao fim das reuniões de trabalho, seus colegas de trabalho a elogiam, dizendo que sua presença enriquece o diálogo. “Há quem diga que eu tenho mais de trinta anos de magistério, mas a verdade é que eu tenho apenas treze”.
Formada em pedagogia aos 54 anos, Valéria tem uma história que se confunde com a história de um País que, por séculos, forçou as mulheres a não priorizarem a educação. Foi apenas em 1759, quando a educação brasileira passou da mão dos jesuítas para o Estado, que as mulheres puderam começar a lecionar para turmas femininas, e somente mais de um século depois, em 1870, é que puderam começar a dar aulas para turmas mistas. Negros e indígenas, mesmo na virada do século XIX para o XX, ainda eram excluídos desse processo.
Valéria nasceu meio século depois, em 1958, no estado de Minas Gerais. Passou sua infância em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, como a terceira de nove filhos. Nessa fase, estudou na Escola Estadual Zoroastro Vianna, que diz ter sido a melhor que frequentou. Na adolescência, aos 15, a família deixou a cidade e partiu para o estado do Rio de Janeiro.
“Quando eu estava fazendo ensino médio, estava atrasada nos estudos, e não havia na minha família uma cultura de formação, principalmente para as meninas”, conta. “Não havia essa preocupação. E eu fiquei com os estudos atrasados, embora eu fosse a única entre minhas irmãs mais velhas a continuar estudando.”
No início da vida adulta, então, um evento marcante parou, por pelo menos três décadas, os estudos formais de Valéria. A vinda do seu primeiro filho, Eduardo, a fez se afastar da escola e até do mundo, segundo ela, por um tempo. “Foi muito complicado porque eu era de uma família conservadora.”
Após o nascimento do bebê, Valéria começou a trabalhar. Atuava em lojas de roupas, boutiques, como ela descreve, em um processo que mais tarde a fez assumir a gerência de um dos empreendimentos. Trabalhou com moda, então, casou-se novamente, foi morar em Roraima, e teve a primeira filha, Beatriz, que nasceu macuxi. Mais tarde, voltaram ao Rio, basearam-se em Niterói, onde ela viu suas crianças crescerem. E quando a mais nova entrou para a faculdade, de alguma maneira encerrando parte da sua missão como mãe, uma centelha de desejo surgiu novamente. Aos 49 anos, Valéria percebeu que queria voltar aos estudos.
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Desde 2009, no departamento de educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em Niterói, a professora Rosimeri Dias coordena um grupo de formação inventiva de professores. Trata-se de um grupo voltado a pensar a subjetividade no processo de formação de docentes, incentivar o pensamento crítico e dedicado às diferenças.
“Eu fiz encontros com Valéria desde a fundação do grupo”, conta Rosimeri. “Ela foi minha aluna na disciplina de psicologia da educação e desde o início ela se apaixonou pela leitura e por um modo de pensar a psicologia de modo mais aberto à constituição de espaços de produção de diferença no campo social e no campo da educação. Ela se encantou com a gente e foi se aproximando.”
Valéria era realmente apaixonada por estudar. Antes de conhecer a professora Rosimeri porém, ela precisou entrar para a universidade. Estudou, fez vestibular na Uerj para o curso de pedagogia empresarial e tinha muito desejo em ingressar no curso superior.
Sua família, em especial sua filha que também estava estudando, ficou surpresa com a novidade. Como Valéria já havia feito “muita coisa na vida”, ninguém imaginava que ela precisava voltar a estudar e, mais do que isso, fazer graduação.
“O desafio dela para entrar era enorme”, explica Beatriz, sua filha mais nova. “Ela não tinha contato com o conteúdo escolar há muito tempo, mas ela é super determinada e estudava de forma super disciplinada para passar. Deu super certo e ela ia pra São Gonçalo todo dia para estudar, além de cuidar da casa, da gente, trabalhar.”
No fim, Valéria foi aprovada no curso que queria. Juntou os documentos necessários para a matrícula e foi à Uerj no dia da recepção de calouros. Ao chegar no departamento de educação, foi questionada pela funcionária da universidade:
“A senhora veio fazer matrícula, mas trouxe a procuração do aluno?”
“Como assim?”
“Você não pode fazer a matrícula em nome de outra pessoa.”
“Mas é pra mim mesmo”.
Naquele momento, conta Valéria, ela percebeu que a missão de estudar não seria tão simples quanto imaginava. No fim daquela década, segundo dados do Censo da Educação Superior, havia 221 mil pessoas com mais de 40 anos, ao lado de Valéria, no ensino superior. E embora esse número tenha triplicado ao longo da última década, chegando a 600 mil alunos em 2021 (15% do total), as pessoas continuam a olhar com estranheza uma aluna de 49 anos se matriculando na faculdade.
“Mas eu tinha uma coisa a meu favor”, contrapõe ela ao falar daquela época. “Eu me importo muito com o que pensam as pessoas muito próximas de mim, mas eu não me importo nada com quem não é próxima de mim. E acho que isso tem uma base de uma relação de muito amor familiar na minha origem. Nós éramos muitos. Isso te dá uma certa autoconfiança. Eu fiz o curso com toda a intensidade de alguém que gostava de estudar e parou”.
Como não tinha filhos pequenos, diz Valéria, ela pôde se dedicar completamente aos estudos e mudar sua visão de mundo ao chegar à disciplina da professora Rosimeri.
“Ali, tive contato com a filosofia, Walter Benjamin, os franceses, Foucault. Foi transformador até para eu perceber que não gostaria mais de trabalhar com o viés empresarial da pedagogia. Eu trabalhava com modelagem de atendimento, com uma única forma de fazer as coisas, e aquilo abriu um novo modo de fazer as coisas pra mim.”
Assim que pôde, Valéria começou a estagiar e escolheu a educação especial, com alunos com deficiência intelectual, como seu ponto de partida.
“De alguma forma, eu me via naqueles processos de exclusão, e eu fui buscar o meu abrigo ali. E foi muito bom.”
Durante a graduação, além de estagiar na Associação Educacional de Niterói (AEN), Valéria escreveu capítulos de livros, apresentou trabalhos em congressos e participou intensamente da universidade. Não só para ela, mas para quem a acompanhou, Valéria foi fundamental nos anos em que passou pela Uerj.
“Valéria é uma dessas pessoas encantadoras, que chega tardiamente na universidade e faz um trabalho que produz uma diferença muito grande na vida de muitas pessoas”, conta Rosimeri.
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Após os anos intensos de graduação, Valéria se formou em pedagogia e começou a procurar emprego. Empolgada, foi a muitas escolas, conversou com muitas pessoas, mas, por muito tempo, recebeu respostas negativas. Sentia que aquilo parecia injusto, já que, na visão dela, seu currículo era “muito bom”.
Quem a acolheu, no fim das contas, foi a AEN, mesma organização na qual estagiou. Ficou lá por alguns anos até que fez um concurso para dar aula na rede pública em Saquarema, onde vive e trabalha até hoje, também na educação especial.
Na visão de Valéria, sua experiência de vida, não só a profissional, a ajuda em alguns conflitos. Isso porque, ao lidar com uma questão com crianças e adolescentes, ela tem a possibilidade de se reportar à experiência pessoal de mãe e irmã. Por ter vivido diferentes formas da infância, diz ela, direta e indiretamente, isso a dá bagagem para interpretar cenários diversos.
Nos últimos 10 anos, em paralelo ao trabalho, Valéria continuou estudando. Fez pós-graduação em psicopedagogia e especialização em deficiência intelectual, ambas online. Agora, a professora quer também fazer um mestrado, presencialmente, ainda que a ideia de ir diariamente a Niterói não a anime tanto, a não ser que seja para ver sua filha Beatriz e seu neto Inácio.
“Minha mãe sempre foi do cuidado, do carinho, da presença e sempre me pediu um neto”, conta Beatriz. “É a avó mais babona, mais amorosa, que faz mais bagunça e brinca com esse neto. É lindo de ver. Ela sempre fica agoniada com as mudanças que eu invento e como eu forço os limites para viver do meu jeito, e talvez tenha sido um pouco daí que ela tirou a coisa da faculdade dela, né? Pensei agora nisso. Dá pra sentir de longe o orgulho que ela tem de mim, mas só sou quem sou porque tive ela e meu pai segurando todas as pontas.”
O carinho de Valéria, que vai do profissional ao pessoal, a leva em direção a um grande objetivo. Ela quer, de alguma maneira, tornar a vida das crianças que ensina um pouco mais fácil.
“O que todos os dias me move e o que sempre espero de mim é que eu consiga fazer um trabalho que dê uma certa autonomia para aquelas crianças”, explica ela. “Por isso eu sempre tenho que estudar.”
Ao falar de situações de preconceito contra pessoas mais velhas que voltam a estudar, como no caso de uma mulher que foi ridicularizada em Bauru na última semana, Valéria diz que isso a entristeceu muito.
“É algo que afeta a todos. A gente pode interferir ou ficar indiferente, mas o que nós temos hoje é uma sociedade capacitista. Temos que fazer um barulho danado numa questão dessas, mas essas pessoas precisam pensar e ter acesso a outras formas de pensamento e outros tipos de valor. Eu me pergunto se não notei que as pessoas tinham essa visão comigo também, mas a gente não pode viver da opinião dos outros, sabe? Isso é uma característica minha.”