Camilla Junqueira tem apenas 32 anos e acaba de assumir a direção geral da Endeavor, uma organização global sem fins lucrativos com a missão de multiplicar o poder de transformação do empreendedor brasileiro. Ela substitui Juliano Seabra, que sai após nove anos – cinco deles na direção-geral.
Camilla vê este movimento como o marco de um novo ciclo na própria Endeavor. Um ciclo que acompanha as mudanças do contexto econômico brasileiro também. “O cenário atual é bem diferente do cenário de 2013”, diz, e como exemplo cita que as dez empresas mais novas do portfólio da Endeavor sequer existiam em 2012. O dado faz parte do Resultados de Impacto Endeavor 2017, que acaba de sair do forno.
No ano passado, 53 empresas de alto crescimento receberam o apoio dos “Empreendedores Endeavor”, criaram mais de 36 mil empregos e geraram 4 bilhões de reais de faturamento. Também em 2017, empreendedores de 250 scale-ups (empresas que crescem 20% ou mais, ao ano) foram acelerados em 16 programas — seis deles em parceria com Grupo Algar, Santander e BRMalls — e aumentaram, em um ano, 55% o faturamento e 50% o número de funcionários, criando mais de 4 mil novos postos de trabalho.
Camilla está, portanto, naquela posição desafiadora de seguir com uma agenda bem sucedida. Na conversa com o Draft, ela destacou dois pilares deste novo ciclo: continuar apoiando os empreendedores e conseguir diminuir as barreiras (e não são poucas) para o crescimento desses negócios. Acompanhe a seguir outros trechos da entrevista:
Defina “empreendedorismo”.
Nossa, que difícil! (risos). Essa é a mesma pergunta que nós fazemos para o empreendedor que é apoiado pela Endeavor: o que é empreender? Mas na Endeavor nós gostamos de falar do papel do empreendedor, que é essencial na construção de um Brasil melhor porque é ele que vai carregar as transformações que a sociedade precisa. A nossa definição de empreendedorismo está ligada à inovação, a revolucionar indústrias e romper com a forma como as coisas são feitas hoje, mas entendendo que essa transformação está sempre em movimento.
A Endeavor acaba de completar 20 anos. O que mudou no empreendedorismo de 1997 para cá?
Para se ter ideia da mudança, vou contar que ao chegar ao Brasil, em 2000 (em 1997 a Endeavor surgiu, nos Estados Unidos), os advogados foram buscar no dicionário o significado de empreendedorismo para elaborar o contrato social… E a palavra não existia! Não existia o conceito do empreendedor, apenas o do empresário – que era retratado como vilão, como aquele que acumula grandes riquezas para benefício próprio. O desafio, naquela época, era desbravar um ecossistema que não existia. Era pegar o facão e começar a abrir caminho para que os empreendedores pudessem ser vistos como esses agentes da transformação, e não como aquele vilão de novela.
Até recentemente, era um movimento de disseminar o empreendedorismo no Brasil. Desde então, muita coisa evoluiu, a gente viu atores importantes surgirem, como empreendedores de alto impacto, aceleradores e investidores dentro desse ecossistema. Muitas grandes empresas estão apostando em hubs para construção de comunidades. Muitas empresas fazendo um trabalho mais próximo de corporate venture. Tem muita coisa acontecendo e a Endeavor teve o seu papel de disseminar o empreendedorismo e dar a ele o peso que merece ter.
Como a Endeavor mudou para continuar sendo relevante?
O principal ponto é nunca se distanciar do empreendedor, já que somos uma organização que vive o dia a dia dele. Talvez o nosso papel deixe de ser relevante quando o empreendedor conquistar tudo que precisa. Mas, enquanto isso não acontece, continuamos sendo relevantes ao ser um suporte neutro, ajudando a impulsionar a empresa e o papel dele de protagonista.
Estimular o empreendedorismo de alto impacto, onde empreendedores que já alcançaram sucesso doam seu tempo para os que estão chegando, é sempre relevante
Esse papel de alavancar a performance e também o protagonismo desses empreendedores no ecossistema é essencial.
Com o tempo, fomos entendendo que o ecossistema ainda era muito cru. E que apoiar apenas o Empreendedor Endeavor levaria mais tempo para alcançarmos o resultado que queríamos: de causar impacto e transformação. Foi quando optamos pela área de educação empreendedora, que era para inspirar e capacitar empreendedores para que eles conseguissem aprender mais rápido. Depois, surgiu o Portal Endeavor, que no ano passado alcançou a marca de 7 milhões de pessoas acessando o conteúdo por ano. Com isso, temos o papel de ajudar não só os poucos que estão sendo apoiados, mas também aqueles empreendedores que não têm esse apoio direto. Isso fez que ganhássemos relevância.
O que significa empreendedorismo de impacto para a Endeavor?
Acreditamos que alguns poucos empreendedores têm potencial de fazer as grandes transformações, de trazer inovações, de serem os precursores para direcionar todo o ecossistema para uma mudança maior. Nós acreditamos na tese do efeito multiplicador: quando o empreendedor atinge determinado sucesso, ele começa a devolver o que aprendeu para outros. Isso é o empreendedorismo de impacto. Por exemplo, quando um funcionário sai de uma empresa e inicia um negócio a partir daquilo de aprendeu, na melhor cópia da Máfia PayPal! Então, esse efeito multiplicador de um bom negócio, de um negócio de sucesso é muito importante para o ecossistema e por isso o trabalho na Endeavor é muito pautado em grandes negócios, em negócios que conseguem crescer continuamente. Esses negócios ainda são pontuais, é verdade. O que queremos é saber o que fazer para que sejam mais recorrentes.
Como a Endeavor vê o empreendedorismo de impacto social, e não financeiro, conceito proposto por Muhammad Yunus, Nobel da Paz?
A gente acredita que tem um papel importante, mas a Endeavor escolheu outro caminho. Acreditamos muito no papel da empresa na comunidade. Nós tateamos um pouco nisso, mas queremos aprofundar essa relação nesse novo ciclo de gestão: como provocar nossos empreendedores a ter esse olhar do papel do empreendedor na sociedade. Ele precisa entender que para ao Brasil crescer, ele precisa colaborar para que outros empreendedores também cresçam.
No mundo da Endeavor, de alta performance, em que se busca escalar o negócio acima de tudo, há espaço para conceitos como colaboração, compartilhamento e cocriação – ou isso é conversa de hipsters?
A rede dos Empreendedores Endeavor é exatamente esse modelo de colaboração! O próprio Vale do Silício é a prova de que há este espaço. Acreditamos que colocar a sua ideia no mundo faz que outras pessoas possam contribuir, criar em cima e fazer que ela se aperfeiçoe muito mais. A gente vive um momento em que cada vez mais empreendedores, especialmente os grandes, entendem que têm um papel de colaborar. A nova leva de empreendedores digitais já surgem mais com esse insight, acreditam mais na possibilidade de trabalhar em conjunto.
Existe diferença entre empreendedor e empresário?
A meu ver, é mais uma questão semântica do que prática. Como a imagem de empresário no Brasil vem muito carregada do “vilão da novela”, ao falar de empreendedor ganhamos um termo para falar do inovador, do cara que quer carregar a mudança, que tem um modelo de negócio que traz um benefício para além do próprio bolso. Mas é uma questão subjetiva, não me apego tanto a esses conceitos. Para nós, da Endeavor, são a mesma coisa.
Você assume a diretoria-geral da Endeavor sucedendo Juliano Seabra, que ficou à frente da instituição por nove anos – cinco na direção geral. Qual será a sua bandeira?
A minha sorte é que eu passei os cinco anos da gestão do Juliano dentro da Endeavor e isso é importante para entender o que está acontecendo. A mudança nesse novo ciclo – que deve ter quatro ou cinco anos – vem pelo contexto. O cenário agora é diferente do que era em 2013: temos cada vez mais e melhores empreendedores, conscientes de seu papel; investidores que querem trabalhar junto e não só contribuir financeiramente e o governo com pequenas – mas importantes vitórias do ponto de vista econômico e com muito potencial de fazer a lição de casa. Temos um cenário muito diferente do ciclo anterior, por isso as mudanças.
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O que muda, de fato, agora?
Vamos atuar em duas frentes: a primeira é continuar apoiando os empreendedores porque somos uma organização pró-empreendedor e precisamos estar próximos deles. A segunda, é conseguir diminuir as barreiras para o crescimento dos negócios. Queremos ter um papel mais ativo na busca por mudanças nas políticas públicas. Temos algumas bandeiras, como a simplificação de abertura e fechamento de negócios, simplificar a tributação e, eventualmente, conseguir emplacar uma reforma tributária. Outra bandeira é o acesso ao capital para os empreendedores inovadores de alto crescimento.
Algumas coisas não mudaram desde 1997!
Exato, mas são bandeiras mais claras de atuação. E o importante é que a Endeavor não pretende fazer isso sozinha. Teremos um papel de articulação muito grande para buscar os atores-chaves para fazer essas mudanças, que podem demorar anos. A Endeavor não precisa fazer tudo, ela pode apoiar uma iniciativa, ter um papel de bastidor. O importante, para a gente, é saber que ao final do dia aconteça uma mudança sistêmica, em que o ecossistema estimula o crescimento e o impacto dos empreendedores, e não o quanto a Endeavor terá de mérito nisso.
Qual você considera que será o seu maior desafio à frente da Endeavor?
Todo desafio é também uma oportunidade e entendo que a tecnologia pode estar a serviço de grandes inovações. Então, um desafio será a Endeavor ver como usar a tecnologia para fazer essas transformações. Outro, que é outra oportunidade, é transformar os 20 anos de história que nós temos para validar teses sobre o crescimento de empresas. Isso é algo que queremos explorar mais. Também queremos colaborar para o desenvolvimento de comunidades dentro dos ecossistemas.
Você assume o cargo de uma organização voltada para o empreendedorismo sem ter sido empreendedora no sentido estrito da palavra. Isso não dificulta o seu trabalho?
É claro que sentir na pele as dores de empreender é uma ajuda muito grande para gerir uma organização que quer apoiar empreendedores. Isso é inegável. Mas não podemos esquecer que gerir uma ONG não é igual a gerir uma empresa. Uma ONG serve exclusivamente à sociedade, não aos meus interesses pessoais ou aos meus acionistas. Ser uma ONG que apoia empresas tem uma complexidade extra (risos). O ideal seria que eu tivesse as duas coisas. Mas tudo na vida são os dois pesos: sob a mesma ótica tem a luz e a sombra. De qualquer forma, meu marido é empreendedor, então vivo na pele essa história de alguma maneira.
O caminho ainda é mais difícil para as mulheres, especialmente em cargos de direção. Como você a questão de gênero, hoje, no mundo do trabalho e do empreendedorismo?
Sou uma eterna otimista, sempre quero acreditar que está mudando, este é o primeiro ponto. Um problema no Brasil é que temos poucos dados sobre o assunto. O que sei é que há uma igualdade de founders no momento inicial do negócio: pequenas empresas iniciantes com equilíbrio de quase 50% de fundadores homens e mulheres. Mas, à medida que essa empresa vai crescendo, aumenta a distância entre mulheres e homens nos cargos de direção. Temos um número muito inferior de mulheres à frente de empresa de alto crescimento na comparação com empresas ditas tradicionais, que não têm o crescimento acelerado. Como consequência, temos poucas mulheres em conselhos de empresas, por exemplo. Mas é difícil identificar os motivos dessas disparidades. Seria até leviano eu argumentar sobre isso. Mas é um caminho que queremos explorar mais na Endeavor.
Como você se atualiza? Quais são as fontes de informação que você segue com regularidade?
Assino newsletters de notícias, tanto mais gerais como específicas do meio de empreendedorismo, de negócios inovadores, tecnologia. E acredito muito no poder dos bons livros. Não só ler sobre negócio, ler sobre o papel de lideranças mundo afora, sobre liderar uma ONG. Sou muito curiosa e acredito em conhecimentos diversos.
Qual é o caminho para reduzir a alta taxa de mortalidade das empresas que nascem no Brasil?
A primeira coisa é que não necessariamente nascer e morrer é tão ruim. Alguns estudos falam de destruição criativa, que é o quanto as empresas às vezes precisam morrer para que novas surjam. Por exemplo: quantas empresas morreram com o surgimento dos aplicativos de mobilidade urbana?
A velocidade com que uma empresa nasce e morre tem a ver com o quanto é benéfica para o país. Quanto mais rápido, melhor, pois vai fazer outro negócio surgir
O que é ruim – falando novamente de governo – é dificultar tanto a abertura quanto o fechamento dessa empresa. Tem um dado de “empresas zumbis” que mostra que o Brasil existem 4 milhões de CNPJ inativos! Um dos motivos apontados para isso é a dificuldade do empresário fechar a empresa por conta da burocracia.
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A Endeavor já identificou que boa parte das empresas brasileiras cresce pouco, e permanece num patamar muito menor do que poderia atingir. Por que isso acontece?
Essa é a pergunta do milhão (risos) e a Endeavor trabalha todos os dias para alcançar a resposta. A causa tem a ver com várias questões, como baixa inovação e baixa ambição. Temos pesquisas que apontam o número de empresários brasileiros que querem gerar empregos nos próximos cinco anos é menos de 4%! A ambição é muito, muito baixa. Daí a importância desses poucos que crescem aceleradamente, porque eles são uma bolha no Brasil. E, ao mostrarmos seu exemplo, colaboramos para aumentar a barra de sonho do empreendedor. É preciso aumentar a barra de sonho do empreendedor brasileiro. Outra questão são as amarras do ambiente do negócio, que tem muita burocracia.
Boa parte dos millenials não sonha mais com um emprego, mas sim com o empreendedorismo. Esses profissionais não irão se frustrar?
Sempre existe a chance de se frustrar.
Se todo brasileiro se tornar empreendedor, o empreendedor não vai ter time
Mas acho que o jeito de trabalhar no Brasil está mudando. Acreditamos muito que é possível ser empreendedor dentro de uma empresa. É possível fazer a transformação sem necessariamente abrir um negócio. Há pessoas brilhantes, de alta capacidade de execução, que estão ajudando empreendedores a construir grandes empresas. Parte do crescer é trazer empreendedores para dentro do negócio. A outra coisa é que ao abrir um negócio esse empreendedor vai lidar com todos esses desafios.
Você trabalhou na Índia, com a ONG Lucknow, voltada para a alfabetização de crianças nas comunidades carentes. Cite uma coisa que a Índia poderia ensinar ao Brasil e uma coisa que o Brasil poderia ensinar à Índia.
A Índia mudou a minha vida. Comecei em uma ONG, em 2009, mas morei uma ano e meio lá. A primeira coisa que a Índia me ensinou foi deixar os preconceitos de lado, passar uma borracha em tudo, tirar julgamentos e se abrir para coisas novas. Nós temos uma tendência de trazer toda nossa bagagem, todo nosso julgamento e partir deles para qualquer tomada de decisão e de olhar sobre o outro, sobre o mundo. A Índia me ensinou a deixar isso para trás e como aplicar isso em outras situações. Outra coisa que aprendi é voltar para dentro, fazer uma autorreflexão antes de criticar o outro, saber se não estou fazendo o mesmo ou pior. Como diz o presidente do Conselho da Endeavor, Fábio Barbosa, a corrupção está também nos pequenos delitos. Outra coisa que aprendi na Índia é ter humildade, ter paciência porque o tempo lá é outro. Para uma pessoa acelerada como eu, isso é muito importante, embora eu precise lembrar disso o tempo inteiro.
Como você trata a sua espiritualidade? O que você faz? Isso te ajuda de alguma forma?
Pratico yoga há dez anos. E também medito. Isso é super válido para lidar com a ansiedade, com grandes preocupações, de colocar os problemas em perspectiva.
Qual foi o maior erro que você cometeu em sua trajetória até aqui?
Não acredito muito em erro e acerto. A gente não pode mudar o passado, então todos os caminhos contribuem para que a gente chegue onde está hoje. E estou muito feliz onde estou! Falar de um grande erro nessa trajetória talvez me tirasse desse lugar. Fiz uma faculdade que me frustrou em muitas coisas, fui trabalhar em publicidade e isso também me trouxe frustração. Mas foi por esse erro que fui para a Índia e ela me trouxe várias coisas. Voltei, vim para a Endeavor, errei em algumas coisas, mas foi por isso que eu cheguei até aqui. Moral da história: não acredito em grande erro.
Erros são importantes. A questão é o quão rápido você aprende com eles e muda a rota
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E o que considera que foi seu maior acerto?
Entrar na Endeavor foi um belo acerto: a união da minha ambição por impacto – não a ambição pessoal, mas de causar um grande impacto no mundo – com o desejo de protagonismo, de ser empreendedora. A Endeavor me permitiu isso e consegui, ao longo de cinco anos, empreender muitas coisas, ter autonomia e agora vou liderar essa organização e dar autonomia para o meu time ajudar essa transformação a acontecer. Inclusive, conheci meu marido na Endeavor. Só pode ter sido um acerto (risos).
Onde você quer estar em 10 anos?
Nossa! Não faço ideia! Vou ter 42 anos e, pensando na expectativa de vida, estarei na metade da minha carreira profissional. Nessa velocidade de mudanças, seria ingênuo achar que sei o que vai estar acontecendo em dez anos. Mas sei o que gostaria de estar fazendo, que é fazer parte da transformação.
Como imagina que as pessoas vão lembrar de você? Qual é o legado que você está construindo?
Na Endeavor? Isso é mais fácil porque é um ciclo de quatro anos (risos). Quero honrar o privilégio de gerir essa organização. Quero olhar para trás e ver que a Endeavor, na minha gestão, deu alguns passos importantes para ajudar os empreendedores a crescer e gerar mais impacto. Quero incorporar tecnologia de forma mais integrada na Endeavor e que sejamos vistos como um ator que joga junto e não contra. Com transparência e regras claras. Quero que esse seja meu legado.
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Portal Draft.
Foto: Reprodução Portal Draft