Como transformar um ideal de vida em negócio?

chef trabalhando na cozinha do restaurante Clandestino

Londres, Portugal, Alasca, Seattle, Pirenópolis, Paraty. Essas são apenas algumas das cidades onde a brasileira Thais Oliveira, 42, e o norte-americano Chris Kaufmann, 44, já viveram, desde que se conheceram há 12 anos nas trilhas de Tiger Leaping Gorge, sudoeste da China. Na época, experimentavam uma vida muito livre, sem grandes planos e compromissos burocráticos. Ter um negócio nem passava pela cabeça do casal nômade.

O que mudou de lá pra cá? Além de terem tido um filho, Noah, hoje com 2 anos e meio, desde 2013 eles são donos do Clandestino, um trailer que vende hambúrguer artesanal e foi pioneiro na cena de comida de rua de Paraty, no Rio de Janeiro. Apesar das novidades recentes, o que permaneceu imutável foi o desejo de conhecer gente, lugares e culturas diferentes, de rodar o mundo, sem grandes planos de vida. Como transformar este ideal de vida em um negócio?

A paixão pela comida de rua sempre foi um fator comum para o casal. “A gente sempre comeu muito na rua. É uma experiência que te dá uma perspectiva mais real de como é a vida do lugar”, conta Thais. Para ela, a grande sacada desse tipo de negócio é a estrutura enxuta, que permite oferecer comida fresca e caseira. Nas andanças pelo mundo, ela e Chris trabalharam com comida, em restaurantes de todo o tipo, Thais como garçonete, ele na cozinha. O casal sempre prestou atenção às peculiaridades gastronômicas de cada lugar, observando ingredientes, receitas inusitadas e a qualidade da comida. Desta bagagem cheia de referências, experiências e sabores marcantes nasceu o embrião do que viria a ser o Clandestino.

Alma viajante No final de 2008, o casal passou um ano e meio em Pirenópolis, Goiás, onde descobriu um novo propósito de vida atuando como voluntários no Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado, o IPEC. Lá, estudaram modelos e estratégias de desenvolvimento sustentáveis, como Chris conta: “Compreendi que é possível fazer as coisas de uma forma diferente usando os recursos naturais e materiais que estão à nossa disposição. E isso vale para os negócios. Se não buscarmos modelos mais sustentáveis e não cuidarmos do nosso passivo, vamos ter sérios problemas”.

Em Pirenópolis, eles também tiveram a chance de aprimorar os conhecimentos administrativos e gerenciais, já que trabalharam em um armazém da comunidade, onde funcionava um restaurante e um café. “Adquiri as noções básicas de administração, estoque e logística, aprendizados que foram muito úteis para o Clandestino”, diz Thais.

De volta a Seattle, nos Estados Unidos, a vontade de abrir um negócio começou a tomar forma e a grande inspiração veio de um famoso food truck local, o Skillet. Ao lado do chef Josh Henderson, criador do negócio, eles aprenderam ainda mais sobre o conceito de comida de rua, que à época vivia um boom de food trucks.

Enquanto Thais trabalhava no restaurante da marca, um típico diner americano, Chris se dedicou a desvendar os segredos da chapa perfeita. Foi de lá que eles trouxeram a receita do sanduíche Seattle, um hambúrguer artesanal recheado com gorgonzola, rúcula e a geleia de bacon que é marca registrada do Skillet.

Thais é jornalista e chegou a exercer a profissão, mas não por muito tempo. “Desisti da carreira no jornalismo porque não me via trabalhando 14 horas por dia, seis dias na semana. Justamente por isso, o nosso trabalho com o Clandestino serve basicamente a dois propósitos: viver bem e viajar”, diz ela. O jeito de fazer negócio do casal pode causar desconfiança e até um certo incômodo mesmo entre empreendedores. Embora eles tenham um lugar cativo em Paraty para estacionar o trailer, no Areal do Pontal, eles operam com total flexibilidade de calendário. No dia desta entrevista, por exemplo, uma sexta-feira de inverno ensolarada, o Clandestino não abriu. O motivo? Chris, que acabava de voltar da Ilha Grande, onde passou alguns dias desbravando trilhas, estava a fim de curtir o dia na praia com a família.

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[Clandestino/Facebook]

Thais fala a respeito do inusitado esquema:“Recentemente, nos demos conta de que criamos um estilo de vida, mas isso foi muito orgânico. O nosso negócio tem a nossa cara e bancamos as nossas escolhas. Se alguém pede hambúrguer achatado e bem-passado, não vai rolar porque esse não é o nosso estilo. Se isso acontece, indico outro lugar e todo mundo fica feliz”

Mesmo atuando dessa forma, eles acreditam que é possível garantir o sucesso do empreendimento de outras maneiras. Uma delas, diz Thais, é fidelizar a clientela local com comida de qualidade. “Com paciência e tempo, eles se transformam em fãs. Nossos clientes nos seguem no Facebook, e por lá acompanham a nossa programação e as movimentações do Clandestino. Isso funciona muito bem.” Mesmo que os dias sejam lindos em Paraty, o Clandestino abre de três a quatro vezes na semana.

É simples, certo? Não. Todo negócio tem seus particularidades. Para Chris e Thais, o ponto mais sensível do modelo de comida na rua é acertar o planejamento das compras, já que a capacidade de estoque é mínima. O Clandestino tem apenas uma geladeira e um freezer. “Tenho que ter sempre comida fresca, mas não posso ter sobras nem desperdícios, pois com isso meu lucro vai para o espaço”, diz a empreendedora.

Ela conta que aprendeu a planejar… Errando. Hoje, eles sabem que num fim de semana normal eles vendem cerca de 50 hambúrgueres. Quando a cidade recebe festivais (como a Flip e o Festival da Cachaça) essa quantidade sobe exponencialmente. Eventualemnte, eles sobem a serra para participar de eventos em São Paulo, como no último Burguer Fest, que aconteceu em maio na capital paulista. Lá, venderam 800 hambúrgueres em 30 horas. Apesar dos gastos extras com aluguel de espaço (em torno de 2 mil reais por quatro dias de festival), a participação vale muito a pena. Com dois anos de funcionamento, o casal já recuperou o investimento inicial, de 10 mil reais.

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Outro ponto bastante complexo é o transporte do trailer, que foi desenhado pelo próprio Chris e comporta duas toneladas de peso. O fato de viverem em um sítio longe do centro de Paraty, complica ainda mais. O caminho até lá consome 40 minutos. Montar e desmontar o veículo leva mais duas horas. Eles já cogitaram transferir parte da operação para o centro, mas isso afetaria a logística familiar que já está muito bem acomodada. “Já pensei em alugar uma cozinha para o preparo das receitas, mas não teria como fazer geleia de bacon à meia-noite, quando o Noah está dormindo. Além disso, teríamos que ter um espaço para estacionar o trailer e para fazer a limpeza dele. Apesar de algumas dificuldades, achamos que vale muito a pena morar em um lugar mais tranquilo”, diz Thais.

Um dos diferenciais do Clandestino está no relacionamento com a comunidade local. Eles criaram o selo “Clandestino Street Food Apresenta” para oferecer à clientela produtos feitos por moradores da região, tal como cerveja artesanal, pães e torradas, brigadeiro etc. “Queremos trazer pessoas talentosas e valorizar a cultura local. Isso não se resume só à comida e bebida, mas também estendemos esse pensamento ao fomentar os artistas de Paraty”, afirma Chris.

Abrir espaço para os outros é uma característica presente em todos os cantos do Clandestino. Está na arte do trailer, fruto de uma construção artística coletiva, e nas receitas que contam com o toque de muitas mãos amigas. A maionese, por exemplo, feita à base de leite e óleo de girassol, foi incorporada ao cardápio por um ex-funcionário do Clandestino, Max Jaques. Ele trabalhou seis meses com o casal e diz: “O Clandestino vive de turismo, mas pensa muito no cliente local, a relação com a comunidade é respeitosa, aberta e bonita. Não se trata apenas de fazer hambúrguer, mas de promover uma intervenção urbana”.

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[Clandestino/Facebook]

A propósito do histórico de viagens internacionais, o cardápio do Clandestino é reflexo das referências colecionadas ao longo da trajetória do casal. Atualmente há sete opções de sanduíches, que custam em média 20 reais e têm os nomes das cidades de onde veio a inspiração. Para facilitar a operação, as receitas têm ingredientes básicos em comum — a carne, o queijo, as hortaliças e o pão. Os molhos, como o barbecue, a mostrada dijon e as geleias de pimenta e bacon são preparados por Thais na pequena e estreita cozinha do casal (lá na casa, no sítio, lembrando). Enquanto Chris comanda a chapa madrugada adentro, com a ajuda de um assistente, Thais fica responsável pela compra da matéria-prima, pelo gerenciamento do estoque e pelo preparo dos condimentos.

Eles usam papel em vez de plástico para embalar os sanduíches, separam o lixo reciclável do orgânico (que vai para uma composteira caseira) e tentam manter o negócio o mais sustentável possível. Mas sofrem com fornecedores. “Os produtores locais não são articulados e não conseguem atender uma grande demanda. Comprávamos queijo de uma fazenda próxima, mas o produtor desistiu do negócio. O mesmo aconteceu com a nossa fonte de alface hidropônica. Hoje, os únicos produtos locais que conseguimos são a cachaça, as ervas, o pão e o limão, que eu mesma pego do meu quintal”, conta Thais.

Chris acredita que o modelo do Clandestino, embora traduza um estilo de vida bastante único, pode ser apropriado e replicado. Não que eles próprios queiram fazer isso. Thais fala: “O nosso próximo passo é fechar as portas. Isso porque a aura do nosso negócio é caseira e não temos a intenção de mudar isso”. Ela sabe que construiu uma marca com valor, o que dificulta esse desapego (algo que, lembremos, ela e Chris praticam desde que se conheceram). “Hoje, não consigo pensar em vender a marca e simplesmente deixar na mão de alguém. O Clandestino é um filho mesmo”, diz.

Independentemente dos rumos do trailer, fato é que a inspiração clandestina começa a gerar descendentes. Há alguns meses, o casal está assessorando bem de perto uma dupla de amigos que pretende abrir a sua própria hamburgueria em São Paulo, com o selo e o padrão Clandestino de qualidade. Vamos aguardar.

 

Este artigo foi originalmente publicado em DRAFT

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