Em setembro de 2015, a Câmara Municipal de São Paulo passou três horas aprovando o projeto de lei 349/2014. O intuito do texto era proibir o transporte de pessoas por carros particulares cadastrados em aplicativos. Na prática, proibia o Uber.
Quando chegou à mesa do prefeito Fernando Haddad, ele pediu a opinião da SP Negócios: vetar ou não vetar? “Toda a discussão começou ali”, lembra João Avelino, em entrevista exclusiva concedida ao portal Na Prática. Ficou decidido que uma sanção não fazia sentido e que a gestão criaria suas próprias regras para o setor, ao invés de proibi-lo.
Formado em economia pela FEA-USP e bolsista da Fundação Estudar, João tinha vindo da consultoria McKinsey e atuava há alguns meses como assessor de diretoria da SP Negócios, uma empresa de economia mista ligada à Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico.
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Acabou se tornando um dos responsáveis pelo plano de regulamentação do Uber, que libera serviços de transporte individual via apps na cidade – um modelo pioneiro no mundo.
Implementado por decreto municipal em maio de 2016, o plano foi descrito pelo Banco Mundial como inovador. “É um esforço valoroso que busca equilibrar os objetivos de promover a inovação da rede de transporte e de serviços de carona com os interesses da cidade e seus residentes”, escreveu a organização.
Demanda Não foi um caminho fácil, nem rápido. Ao todo, a equipe de quatro pessoas passou oito meses no projeto. “Um arcabouço regulatório no setor era de fato necessário e o próprio Uber já pedia essa estabilidade e segurança jurídica”, lembra João.
João Avelino, bolsista da Fundação Estudar
Apesar da aceitação por parte de usuários, a empresa enfrenta multas, apreensão de veículos, processos, boicotes e agressões a motoristas em diversas cidades do país, incluindo São Paulo. Não é uma exceção brasileira, já que o Uber também atua numa espécie de limbo jurídico em outros lugares, mas era preocupante.
Como regulamentar as “caronas remuneradas” da mesma maneira que um táxi não parecia apropriado, o jeito foi pensar diferente. “Então mudamos a lógica e passou a ser caso de regulação do viário urbano, que passa pelo uso da rua, pelo trânsito, pela mobilidade urbana”, diz João.
Para começar o processo, a equipe fez diversas reuniões com o prefeito e seus secretários para definir outras possibilidades. Depois, foram a campo conversar com uma série de atores, como sindicatos, universidades e órgãos como o Fórum Econômico Mundial e o próprio Banco Mundial.
Em dezembro, com o plano praticamente pronto, organizou-se uma consulta pública, que teve o maior número de contribuições da história da cidade. Algumas das seis mil sugestões foram incorporadas ao texto final.
“Sabíamos que seria um debate muito duro e só iríamos ganhar se tivéssemos um parecer favorável da sociedade, não só técnico”, diz. “E para dar certo, precisávamos conversar com todo mundo.”
Política Com o documento concluído, foi hora de enfrentar outro assunto espinhoso: aprovar por decreto da prefeitura ou levar o plano à Câmara Municipal? A diferença é a estabilidade jurídica: um decreto pode ser revogado por outra gestão, enquanto uma lei não. Ao mesmo tempo, o prefeito poderia aprovar o texto na íntegra, enquanto membros da Câmara exigiriam mudanças.
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Lidar com as restrições políticas de uma política pública foi o segundo grande desafio do projeto – e período de muito pensamento estratégico. João se lembra das muitas reuniões com vereadores e bancadas, além de momentos tensos em dias de audiências públicas. “Éramos cercados por milhares de taxistas, escoltados pela polícia”, conta. “Mas também aprendi muito sobre como funciona o processo de leis.”
Sob a pressão de um ano eleitoral, os vereadores não queriam aprovar o texto. A mesma pressão fez com que pelo menos se comprometessem a não derrubar o decreto de Haddad. Assim, o papel finalmente ganhou sua assinatura oficial.
Fora do papel Ao todo, foram reguladas três atividades de compartilhamento de carros: o transporte individual remunerado de passageiros, a carona solidária e o compartilhamento de carros sem condutor. É aqui, principalmente, que os meses de pesquisa da SP Negócios aparecem para o público.
O Uber, assim como qualquer outro rival futuro, se encaixa na primeira categoria. Para atuar de maneira regular em São Paulo, a empresa precisa se tornar uma Operadora de Tecnologia de Transporte Credenciada (OTTC) e, depois, comprar créditos em quilômetros para operar.
O preço inicial será de 10 centavos por quilômetro percorrido, em média. O valor pode variar de acordo com critérios como horários de utilização (mais barato fora da hora do rush, por exemplo), área de atuação (para atuar onde há déficit de transporte) e gênero (para incentivar a contratação de motoristas mulheres).
Outra exigência é que os apps forneçam à prefeitura alguns dados sobre as corridas, como origem e destino, mapa do trajeto, tempo de duração e espera e avaliação do condutor, que servirão para alimentar pesquisas sobre mobilidade urbana. São pontos que refletem bandeiras políticas importantes para a prefeitura, explica João.
Hoje com 26 anos, ele enfrentou certa desconfiança no começo das negociações – a juventude é uma característica frequente na equipe da SP Negócios. “Tivemos sorte de ter patronos fortes, como o atual secretário de finanças e o próprio prefeito, e muitas vezes íamos já legitimados por esses atores”, conta. Em algumas horas de conversa, garante, o receio inicial já era desfeito.
A parte mais legal, diz João, foi ver o trabalho sair do papel e tornar-se realidade. Os meses que passou descobrindo os meandros do sistema político, com suas trocas, debates e ajustes, também foram impactantes. “Aprendi a respeitar ainda mais o processo da área pública”, finaliza.