A crise econômica de 2008 e os recentes escândalos de corrupção no Brasil mudaram a vida do advogado de empresa. A afirmação é de Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial na USP (Universidade de São Paulo) e sócio fundador do escritório PGLaw, e de Caio Henrique Yoshikawa, advogado e mestrando em Direito na USP.
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Autores de um artigo da coletânea A formação da advocacia contemporânea, publicada no começo do ano pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio, eles defendem que, hoje, o advogado é muito mais cobrado em matéria de ética do que no passado. Desde a crise de 2008, a preocupação com os riscos trazidos pelo trabalho dos escritórios de advocacia também aumentou – bem como a exigência dos clientes por produtividade.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista que os autores concederam a EXAME.com, em que analisam o cenário da profissão frente às mudanças econômicas e políticas dos últimos anos:
Qual foi a responsabilidade dos advogados de empresa na crise financeira de 2008?
Caio Yoshikawa: A origem da crise de 2008 foi jurídica por duas razões principais. A primeira é que um dos principais fatores para que ela acontecesse foi a expansão desenfreada do mercado de derivativos de balcão, que teve uma origem legal. O segundo motivo é que a moldura contratual dos derivativos foi construída por sofisticados advogados empresariais. Tudo começou com uma lei promulgada por Bill Clinton em 2000, que liberalizou o mercado dos derivativos de balcão. Outras mudanças legislativas nos Estados Unidos, que concederam certas vantagens a credores de contratos derivativos, também contribuíram para que isso acontecesse.
Carlos Gouvêa: O interessante é notar que as grandes crises econômicas da história foram causadas por grandes fomes, doenças e desastres naturais, ou por uma crise industrial, no caso da Grande Depressão de 1930. Já em 2008, o centro do desarranjo econômico foi um instrumento jurídico. Os escritórios de advocacia estavam tão ligados ao problema quanto os bancos.
De que forma esse acontecimento afetou a profissão?
Carlos Gouvêa: Diretamente, percebeu-se que a profissão jurídica também cria riscos. As inovações desenvolvidas por escritórios de advocacia têm um impacto na vida das pessoas. Hoje, quanto você pensa num novo modelo de contrato ou estrutura societária, deve pensar nas consequências que isso terá para a sociedade de forma geral.
Houve também outro impacto, indireto. Com a crise econômica, as empresas passaram a ter menos recursos para pagar os honorários dos advogados, e então começaram a exigir mais eficiência e produtividade dos escritórios. Isso levou a um aumento no uso de tecnologias, como softwares para preparar petições e contratos, por exemplo. Houve uma separação entre o trabalho que podia ser feito com recursos tecnológicos e aquele que só poderia ser feito por pessoas.
Caio Yoshikawa: A crise financeira de 2008 criou um ambiente hostil à advocacia empresarial, de modo geral, pois as empresas afetadas passaram a cortar custos com advogados. Dentro desse cenário, ou as empresas pagam caro para ter um serviço de advocacia empresarial de alto nível para a resolução de casos complexos e que exigem conhecimento especializado, ou cortam custos ao contratar escritórios mais baratos para lidar com demandas massificadas.
Qual era, no passado, a formação ideal do advogado empresarial? Qual é hoje?
Caio Yoshikawa: No passado, a formação generalista era a prioritária. Em especial no Brasil, a advocacia contenciosa historicamente sempre teve muito mais significado do que a consultiva, mesmo na área empresarial. Por isso, o foco do ensino jurídico sempre residiu mais no ensino do direito civil, processual civil, penal e processual penal, sempre com base em doutrina e lei. A advocacia empresarial mudou de formato no Brasil, sobretudo por novidades dos últimos 20 anos, como o desenvolvimento do mercado de capitais e da regulação em diversos setores da economia. Ao mesmo tempo em que se hoje requer mais especialização, a formação do advogado empresarial deve incluir o domínio de ferramentas jurídicas básicas das diversas áreas do direito para resolver casos complexos.
Carlos Gouvêa: Hoje, o advogado é cobrado pela sua capacidade de análise de risco. No passado, bastava você saber se a sua proposta estava de acordo com a legislação ou não, era uma análise limitada. Hoje, a sociedade exige que as empresas e seus advogados considerem as consequências a longo prazo das suas atividades. Além disso, o perfil exigido hoje é muito mais multidisciplinar. O advogado deixa de aplicar uma técnica simples de interpretação da legislação. Ele precisa analisar esse texto em relação à tecnologia, à economia, à psicologia social, à História. A expectativa sobre os conhecimentos do advogado cresceu muito.
Como a investigação e o debate sobre os escândalos de corrupção no Brasil afetam a profissão do advogado empresarial?
Caio Yoshikawa: O profissional passa a ser mais cobrado em matéria de compliance, pois não só os escândalos, mas a própria lei anticorrupção exige a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria, incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética. Os escândalos de corrupção recentes, que motivaram a criação de uma diretoria de governança na Petrobras, têm indicado uma vontade política maior para o enfrentamento destas questões por parte dos órgãos de investigação. Por isso, sem dúvida, a cobrança dos advogados para informar os responsáveis acerca dos riscos envolvidos em atos de corrupção ou condutas anticompetitivas, tende a se intensificar.
Carlos Gouvêa: No passado, a profissão de advogado tinha a ver com uma ética pressuposta, que não era questionada na prática cotidiana. Antes, se você era advogado, era esperado que agisse de forma ética. Acontece que, com a complexidade do mundo contemporâneo, quase nada sobrevive com base apenas em pressupostos. Hoje, o advogado não pode mais se sustentar com base no seu título, ele tem que provar sua ética todo dia, na prática. Ele precisa refletir sobre isso o tempo todo. É algo que o advogado precisa ser treinado para fazer.
Este artigo foi originalmente publicado em EXAME.com