“Na época, o esperado era que meu marido tivesse a carreira de sucesso e eu tivesse um emprego na universidade, um filho e me acalmasse. Só que eu nunca me acalmei.”
É assim que Márcia Barbosa, diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro da diretoria da Academia Brasileira de Ciência, se refere à situação de mulheres cientistas nos anos 1990.
Quase três décadas depois, tivemos avanços em certas áreas. Segundo relatório da Elsevier, as brasileiras são hoje líderes mundiais em publicação científica e escrevem 49% dos artigos do país. Da mesma forma, o número de mulheres bolsistas de pesquisa do CNPq na área de exatas mais do que dobrou desde 2011. Ainda assim, o mundo ainda está longe da paridade ideal, especialmente em cargos de liderança.
Ao longo da carreira, Márcia desenvolveu um interesse pelo tema de gênero, especificamente a representatividade feminina no campo STEM (acrônimo em inglês para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) e conduz grupos de discussão e pesquisas sobre o assunto.
“O que me preocupa é que, se não trouxermos mais diversidade para a ciência, nós [mulheres] não seremos capazes de resolver os problemas relacionados à energia, água e meio ambiente, que envolvem muita física e engenharia”, explica, mencionando alguns dos grandes problemas que a humanidade tem pela frente. “Tenho medo de termos um leque de opções extremamente limitado.”
É uma preocupação global. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, as chances de uma mulher conseguir uma posição de liderança ainda são muito menores (28%) e, com a demanda crescente por profissionais de STEM em toda parte, caso não haja um esforço amplo para compreender e remediar o quadro, o famoso gender gap corre o risco de aumentar.
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“Nunca é esperado que a mulher faça sucesso e é preciso matar um leão por dia”, opina Márcia, hoje reconhecida dentro e fora do país por suas pesquisas sobre as propriedades da água. É um ciclo vicioso: dentro de um sistema desigual, as mulheres do campo STEM têm menos acesso a fundos, redes de contato e posições seniores, o que as deixa em uma “desvantagem crescente”, afirma a UNESCO.
Além de ser uma questão de justiça, a igualdade de gêneros também é de importância estratégica para empresas e governos. Uma equipe diversa é mais criativa, promove mais ideias, representa mais fielmente as necessidades e desejos da sociedade e, segundo estudos, tem uma performance superior.
Basicamente, a presença feminina no campo STEM é essencial e proveitosa. O que, então, está no caminho?
Os obstáculos para a igualdade de gêneros
Em qualquer indústria em que a falta de liderança feminina é um problema (e são todas), há algo em comum: a disparidade entre mulheres em cargos iniciais e aquelas que chegam topo.
Conforme a carreira avança, as mulheres vão ficando cada vez mais raras – e apenas 9% dos CEOs do mundo são mulheres. “Elas entram, mas são enxotadas”, resume Márcia.
Muitos estudos usam o mesmo termo para descrever o problema: leaky pipeline, um cano com vazamentos. E o plano é descobrir onde estão esses buracos, variados e cumulativos, para remediá-los através de ações específicas.
Há a divisão desigual de afazeres domésticos e cuidados com a família, por exemplo, que dificulta a conciliação de carreira e responsabilidades familiares. Há a questão da maternidade, que ainda torna a contratação de mulheres menos vantajosa aos olhos de muitos empregadores.
Há também os viéses inconscientes, como são chamadas as crenças que influenciam os processos de seleção, avaliação e promoção dentro das organizações.
Há a mentalidade que vem da formação de grande parte das mulheres, que não são estimuladas a serem ambiciosas ou almejarem os altos cargos. E há também a divisão cultural entre os sexos, que faz com que homens e mulheres acreditem que existam atividades e funções “para eles” e “para elas” desde a infância.
Nas ciências, de acordo com a UNESCO, a combinação de fatores ainda inclui o ambiente acadêmico, em que falta de reconhecimento e de apoio por parte de líderes e relações problemáticas com supervisores, frequentemente homens, levam a sentimentos de isolamento e abandono.
O resultado são jovens mulheres que veem a carreira nessas áreas como uma existência solitária em uma atmosfera competitiva e que exige muitos sacrifícios pessoais.
“Dizemos que se uma mulher é cientista, é horrorosa, nerd, infeliz… Essa desconstrução precisa ser acelerada”, afirma Márcia. E essa imagem do intelectual em uma torre de marfim, continua a professora, é coisa do passado.
“Um dia, um professor me perguntou: ‘A física viveu tão bem sem mulheres até agora, por que precisamos tê-las?’”, fala. “É porque a física mudou muito. No século 18, era possível fazer experimentos sozinho e trabalhar na própria cozinha. No século 21, temos muitas pessoas pensando sobre problemas complexos em um ambiente colaborativo – e aquele mesmo perfil não vai funcionar agora.”
O professor entendeu o recado: é preciso ampliar o universo de possibilidades para encontrar as pessoas mais adequadas para fazer ciências, sejam elas quem forem.
A importância da liderança feminina
“Se você perguntar quem são os grandes cientistas, a maioria dirá Albert Einstein, Isaac Newton, Nikola Tesla, Michael Faraday, Richard Feynman – e nenhum nome de mulher”, diz Kawoana Vianna, integrante da rede Líderes Estudar, um programa da Fundação Estudar que desenvolve jovens de alto potencial. “Como uma menina vai se interessar pela carreira científica se todos os referenciais são homens?”
Aluna do quarto ano de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Kawoana fundou, há dois anos, a iniciativa Cientista Beta, que produz conteúdo científico e conecta alunos de ensino médio com mentores voluntários.
A ideia de ajudá-los a desenvolver seus projetos de pesquisa e ensinar métodos científicos veio de sua própria experiência: ela passou horas revisando pôsteres, projetos e experimentos de colegas na escola.
“O Cientista Beta é um desafio de liderança”, fala ela, que se envolve em todos os aspectos, de parcerias à diagramação de ebooks. “Ser um referencial é muito difícil porque as pessoas esperam muito de mim.”
[Kawoana Vianna / Acervo pessoal]
Ao mesmo tempo, é um desafio que ela abraça. “Quando falamos em ciência, não estamos acostumados a enxergar referências femininas”, explica. Esse é um problema, justifica, porque “o primeiro passo para conquistar algo grande é acreditar que você consegue”.
Julia Dias, também aluna de Medicina e atualmente no internato da Universidade de São Paulo, vê um problema histórico. “Existem vários casos em que mulheres foram cruciais para descobertas importantíssimas, dignas de prêmio Nobel, mas sem o reconhecimento devido.”
Percepções iniciais
Encarar as falhas e não varrê-las para baixo do tapete é o primeiro passo, seguido de ações práticas que comecem na infância e sigam até redes de contato e sistemas de apoio profissionais.
“Precisamos promover ambientes em que meninos e meninas sejam igualmente estimulados em todas as áreas e sintam que são, ou podem ser, igualmente aptos”, afirma Julia, que pretende pesquisar a genética humana. “E precisam existir esforços constantes para que cientistas, engenheiras, programadoras, entre outras, entrem em contato e sejam exemplo para as mulheres desde os primeiros anos de estudo.”
A engenheira eletricista Raiane Pinheiro concorda. “Na hora de começar a pensar no curso, falta conhecimento e incentivo para as mulheres escolherem seguir esse tipo de carreira”, opina.
Seu próprio caminho para a engenharia aconteceu por acaso, quando se inscreveu em um curso profissionalizante de mecânica para ajudar na renda da família. A turma incluía outras oito mulheres – um recorde para a unidade do Senai em Jacareí – e foi um momento formativo.
Raiane tomou gosto pela operação das máquinas e foi a melhor aluna da sala. “Aquilo me mostrou que não existe coisa de homem e coisa de mulher. O que existe é o que você está determinada a fazer e ninguém pode te impedir.”
Incentivada pelos professores e pelos colegas, fez um curso técnico em eletrônica e prestou vestibular. O que era uma realidade distante na época se transformou num duplo diploma pela Politecnico di Torino e pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Na sala de aula paulista, era uma das três mulheres entre quarenta alunos. Hoje trainee da Embraer, ela também nota facilmente a falta de mulheres no setor aeronáutico, tanto em níveis técnicos quanto gerenciais, e vê um ciclo que se autoperpetua.
“Se temos menos mulheres estudando e se preparando no campo STEM, teremos menos mulheres em posições de liderança, menos pesquisadoras mulheres e menos participação feminina em discussões no futuro.”
Já Carolina Lima, que está no começo da graduação em Ciências da Computação e Matemática, percebeu o gosto pelas exatas ainda pequena. “Eu nem sabia que existia essa coisa de ser uma mulher em exatas”, lembra. “Meus pais sempre me incentivaram e eram eles que me importavam mais.”
Começou a participar de olimpíadas científicas e percebeu que muitas vezes era a única menina nos eventos. No ensino médio, que fez em uma escola técnica, era a única garota entre 24 alunos.
“Percebi que não era comum ser uma menina em exatas e algumas vezes me sentia insegura com isso”, diz ela, lembrando-se dos colegas que preferiam pedir ajuda aos garotos, mesmo que soubessem menos, do que para ela. “Ao mesmo tempo, muitas vezes me sentia incentivada. No meio de todos os homens, me sentia diferente e, de certa forma, especial.”
Hoje estudante da Yale University, universidade da Ivy League americana e que recentemente ganhou um pavilhão dedicado à brilhante programadora Grace Hopper, ela se surpreendeu positivamente com o número de estudantes do sexo feminino.
“A principal coisa é não acreditar em quem te acha ruim porque você é menina”, aconselha. “E lembrar que, ao incentivar a mulher, a gente simplesmente duplica o potencial da sociedade.”
Os desafios do sistema
Em um vídeo viral, Neil Degrasse Tyson, astrofísico que apresenta a série científica Cosmos (em que contribuições de cientistas mulheres ganham destaque), falou sobre as dificuldades que minorias enfrentam na luta contra estereótipos.
“Nunca fui mulher, mas fui negro minha vida toda, então posso oferecer insights dessa perspectiva porque há temas em comum”, começou. Seu interesse pelo assunto era tão profundo que os obstáculos para alguém que queria ser “algo fora dos paradigmas da expectativa do poder” serviram apenas como combustível – o que não significa que todos outros os enfrentaram da mesma maneira.
“Agora aqui estou eu, um dos cientistas mais famosos do país, e olho para trás e penso: ‘Onde estão os outros que poderiam ter sido isso?’ E eles não estão ali”, disse. “Minhas experiências de vida me dizem que, se você não encontra negros na ciência e mulheres na ciência, essas forças são reais. E eu tive que sobreviver a elas para chegar aqui.”
Mesmo na Escola de Saúde Pública da Harvard University, onde fez um intercâmbio, Julia notava essa ausência. “Havia apenas duas mulheres chefes de laboratório dentre mais de dez pesquisadores-chefes”, fala.
Havia, no entanto, uma novidade: espaços de debate e construção coletiva com foco na inclusão de grupos minoritários. “Na minha visão, esses espaços são a principal diferença entre lá e o Brasil”, fala. Ao enfatizar a empatia e a diversidade de pontos de vista, tais espaços podem criar transformações profundas.
Afinal, não se trata apenas de incentivar mulheres a estudarem certos assuntos, mas de incentivar outros participantes do sistema a aceitarem e trabalharem com elas em pé de igualdade para que todos se beneficiem.
“Cada estereótipo quebrado nos deixa mais perto de alcançarmos uma sociedade mais desenvolvida, com soluções mais inteligentes e diversificadas para os problemas que ainda enfrentamos hoje”, afirma Julia.
É essa noção inclusiva que está por trás de grandes campanhas, como a HeForShe e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, ambos da Organização das Nações Unidas e que orientam novas políticas públicas e corporativas.
É uma mensagem notável. Ao invés de destacar de forma isolada um grupo historicamente desfavorecido, a abordagem atual em prol da igualdade de gêneros é de uma união de esforços para criar uma sociedade mais justa e eficiente para todos.
“Precisamos identificar barreiras e, juntas e juntos, combatê-las”, finaliza Márcia.
Saiba mais
Interessou-se pelo assunto? Confira iniciativas e organizações destacadas pelas entrevistadas:
1. Bill & Melinda Gates Foundation
“A Melinda Gates ouviu o quanto mulheres africanas queriam ter menos filhos pra poder criá-los melhor e evitar ficarem doentes e enfraquecidas, mas os homens daquela cultura não aceitavam ter preservativo e essa decisão não ficava mais em posse da mulher”, conta Kawoana.
Surgiu então um programa de contracepção que oferece às interessadas métodos anticoncepcionais como pílulas e injeções. “Admiro muito seu trabalho e quero fazer algo nessa linha no futuro.”
2. Meninas na Ciência e Lugar de Mulher
Projetos do Instituto de Física da UFRGS para atrair meninas e empoderar pesquisadoras.
3. Programa L’Oréal-ABC-Unesco para Mulheres na Ciência
Parceria entre L’Oréal, Unesco e Academia Brasileira de Ciências para destacar mulheres cientistas no país.
Anualmente, jovens doutoras brasileiras com projetos científicos de mérito são premiadas com bolsas de R$ 50 mil para utilizar em suas pesquisas. As professoras Márcia Barbosa e Thaisa Bergmann, entrevistada pelo Na Prática em 2016, também já venceram o prêmio internacional.
4. Million Women Mentors
“A MWM conecta mentores do campo STEM especificamente com garotas e mulheres para estimular que elas sigam carreiras nessa área e assim aumentem a representatividade feminina nesses meios”, explica Julia.
5. Rosalind Franklin Society
Organização que destaca a participação e reconhecimento de mulheres no campo STEM. Sua principal atuação é em ajudar mulheres a alcançarem posições de liderança nas universidades, indústrias e governos.